Paulo de Carvalho de Azevedo Carioca
Segundo Luigi Ferrajoli, uma das características mais relevantes da profunda e crescente crise do Direito a que presentemente assistimos, são o nível e a constância do desacato à lei, configurando uma verdadeira ‘‘crise da legalidade, ou seja, do valor
vinculativo associado às regras pelos titulares dos poderes públicos, que se exprime na ausência ou na ineficácia dos controles e, portanto, na variada e espetacular fenomenologia da ilegalidade do poder’’ (‘‘O direito como sistema de garantias’’.
in ‘‘O novo em Direito e Política’’/ org. José A. de Oliveira Jr. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 89).
O outro aspecto da crise, ainda segundo o ponto de vista do ilustre professor italiano, reflete-se ‘‘na inadequação
estrutural das formas do Estado de Direito às funções do welfare state, agravada pela acentuação de seu caráter seletivo e desigual, em conseqüência da crise do Estado Social’’. A ausência, neste último, de um sistema de garantias dos direitos sociais
comparável, em nível de regulação e de controle, ao sistema de garantias já disponível para os direitos de propriedade e de liberdade, além de significar um sério fator de ineficácia de direitos, consiste no ‘‘terreno mais fecundo para a corrupção
e para o arbítrio’’ (idem, ibidem, p. 90).
Um primeiro intento de solução para a crise da razão jurídica liberal deve passar necessariamente pela ampliação e melhoria do controle da legalidade dos atos dos titulares do poder e
pela implementação de garantias voltadas para a efetividade dos direitos sociais, segundo o constante no ideário do Estado Social.
Embora, obviamente, essa busca não exclua outros agentes sociais e instituições, nas atuais circunstâncias,
o papel dos tribunais de contas assume uma enorme relevância, pois a proteção e o asseguramento dos direitos sociais, enquanto prestações estatais positivas, dependem igualmente de um eficaz sistema de controle da legalidade e da legitimidade da ação
concretizadora do Estado, com o necessário deferimento de amplo acesso aos titulares dos referidos direitos, corolário do direito constitucional de participação e fiscalização. Há que se garantir a participação dos próprios interessados na efetividade
dos direitos sociais, por meio da ampliação do acesso ao sistema de controle dos atos da administração, seja o de caráter político, exercido pelo Congresso Nacional, o jurisdicional, provocado pelas ações típicas, como a ação popular, ação civil pública,
mandado de segurança coletivo, etc., ou o exercido pelos tribunais de contas.
É intuitivo que a concretização e a incolumidade dos direitos sociais dependem enormemente do reconhecimento e da ampliação do direito basilar de acesso
à Justiça, entendido no sentido mais amplo de acesso à ordem jurídica justa, vez que a titularidade de tais direitos ficaria vazia de sentido se não houvesse mecanismos para sua efetiva concretização.
Sabe-se que o direito à ordem
jurídica justa tem sido grandemente enfatizado pelo chamado movimento de acesso à Justiça, caracterizando um enfoque que envolve a atual processualística de forma crescente. Entre os resultados alcançados, além do alargamento e aprofundamento dos
objetivos da Ciência do Direito Processual, destacam-se: a) o reconhecimento, por parte dos juristas, de que as técnicas processuais servem a funções sociais; e b) os órgãos do Poder Judiciário não são a única forma de solução de conflitos de interesse
(Cappelletti, Mauro. ‘‘Acesso à Justiça’’. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 12).
Não obstante, o obstinado apego ao princípio da unidade da jurisdição, hoje socialmente relativizado pela pressão da sociedade por maior eficiência
jurisdicional, aliado ao velho ranço dogmático, afasta o complexo de procedimentos utilizados no âmbito dos tribunais de contas do preciso e estrito conceito de processo, apartando-os, por via de conseqüência, da atenção de eméritos processualistas
que poderiam colaborar para o seu aperfeiçoamento contínuo.
No entanto, é de clareza solar que os tribunais de contas podem e devem desempenhar importante papel na ampliação do acesso do cidadão e da sociedade civil organizada
ao controle dos atos da administração, o que, ao meu ver, ainda não foi devidamente reconhecida pelos doutrinadores, operadores do direito e pelos próprios titulares desse direito: os cidadãos.
A Constituição privilegiou e engrandeceu
a cidadania ao conferir o direito de controlar os atos da administração pública aos cidadãos, por meio da denúncia de ‘‘irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União’’ (art. 74, § 2º). Para o resguardo do interesse público
ameaçado por tais ilegalidades e irregularidades, a Lei nº 8.443/92 conferiu ao Tribunal de Contas da União o poder de determinar, ‘‘cautelarmente, o afastamento temporário do responsável, se existirem indícios suficientes de que, prosseguindo no
exercício de suas funções, possa (…) causar novos danos ao erário ou inviabilizar o seu ressarcimento’’, ou, ‘‘decretar, por um prazo não superior a um ano, a indisponibilidade de bens do responsável, tantos quantos considerados bastantes para garantir
o ressarcimento dos danos em apuração’’ (art. 44, § 2º).
A positivação desses direitos e poderes, no entanto, não é garantia de efetividade do acesso a tais controles. O direito ao controle-cidadão da legalidade, legitimidade,
economicidade e razoabilidade dos atos da administração pública, e à exigência do respeito devido ao interesse público, mediante quaisquer modalidades de controle, freqüentemente é obstaculizado por regras financeira e orçamentária dos órgãos e entes
públicos, baixo nível de informação e apatia da população, alto custo pessoal dos processos, com as retaliações e as perseguições de praxe, etc.
Ademais, a tutela dos direitos sociais coletivos, postulada e garantida por meio desses
mecanismos, muitas vezes tem sua utilidade esvaziada por completo quando chega a destempo. Desse fato provêm a importância fundamental dos procedimentos e medidas cautelares no controle exercido pelos órgãos do Poder Judiciário e pelos tribunais de
contas.
Portanto, não obstante seu abandono, é inegável a relevância do estudo e da avaliação crítica, sob o amplo enfoque do movimento de acesso à Justiça, dos mecanismos procedimentais e institucionais disponíveis para o controle
dos atos da administração pública, por parte dos cidadãos, partidos políticos, associações e sindicatos, dando-se maior ênfase ao fator temporal (celeridade/morosidade), como preponderante na conformação de sua efetividade.
O controle
efetivado pelos tribunais de contas, nesse contexto, assume grande importância, por ser obviamente mais especializado que as demais modalidades de controle, pois o controle externo é o objetivo institucional precípuo dessas cortes de contas, e também
por apresentar a característica de ser potencialmente mais célere, à vista da maior flexibilidade de seus procedimentos e dos poderes de cautela conferidos pelo ordenamento jurídico.
A busca de soluções para a crise do Direito,
portanto, deve passar necessariamente pela constante busca de maior eficácia dos controles da legalidade dos atos dos titulares do poder e no reforço do sistema de garantias dos direitos sociais, sob pena de correr-se o risco de transmutá-la ‘‘em
crise da democracia, permitindo a reprodução de formas neo-absolutistas de poder público, isentas de limites e de controles e governadas por interesses fortes e ocultos’’ (Ferrajoli; idem, ibidem, p.90).
Acredito, ainda, que o
êxito do resgate da crença social nos cânones do Estado Democrático de Direito, por meio da eficácia dos sistemas de controle da ação estatal, pressupõe também o efetivo envolvimento dos cidadãos no seu exercício, com o reforço de antigos e esquecidos
costumes democráticos, pois, como preleciona Ferrajoli, ‘‘não há boa democracia sem costume democrático, e costume democrático significa (…), enfim, saber distinguir e não confundir interesses privados e públicos’’, e ‘‘não há maior inimigo da democracia
que o cidadão apático, indiferente, cético ou, pelo contrário, pouco respeitador das regras, que infringe sem muitos escrúpulos quando está certo de passar despercebido’’ ) idem, ibidem, p. 116).