Hélio Bicudo
Apresentada em 1992 pelo signatário, então deputado federal, a proposta de emenda constitucional para a reforma do Judiciário não teve e possivelmente não terá tramitação tranquila, como consequência de grandes interesses pessoais e corporativos em jogo.
Exigência de uma sociedade que anseia por ter acesso à Justiça, a emenda em questão, que buscava alcançar esse objetivo, aparece, nos últimos entreatos, alterada (para não dizer totalmente desfigurada) por dois substitutivos que se lhe seguiram e
que nada têm a ver com o que de início se pretendeu.
Nesse sentido é que se deveria, antes de mais, refletir sobre o alcance de um substitutivo que se constitui em nova proposta de emenda, como ora acontece. Quando se exige para a apresentação
de uma emenda por parlamentar -mesmo que seja para emendar uma emenda- o apoiamento de, no mínimo, um terço dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal (artigo 60, I, da Constituição), é pelo menos esdrúxulo que o relator de uma comissão
especial possa apresentar uma nova emenda subscrita somente por ele mesmo.
Na verdade, foi o que aconteceu. Em vez de procurar, mediante a reforma, alcançar as metas pretendidas pela emenda originária (sobretudo dar ao povo acesso à Justiça
e torná-la mais dinâmica), preferiu-se cair na vala comum de quantos querem privilegiar -como se com isso se pudesse fazer o Direito viver- os interesses do Estado, ainda quando se oponham àqueles do ser humano.
Aí estão, por exemplo, a súmula
e o efeito vinculantes, num retorno, com novas vestes, ao arbítrio dos governos militares. A medida proposta lembra, sem dúvida, a avocatória, de ominosa memória. Ninguém duvida que o Direito se faz, muitas vezes, segundo os ensinamentos da jurisprudência
enquanto “arte do bom e do equitativo”, na lição do Direito romano. Mas uma coisa é a jurisprudência criativa e criadora do Direito, entregue ao livre debate de seus operadores; outra é o engessamento que a proposta do substitutivo pretende impor
aos magistrados que lutam nas primeiras trincheiras para dar a cada um o que é seu.
Deixou-se, ademais, inteiramente de lado a idéia de transformar o atual Supremo Tribunal Federal em corte constitucional ou a de entregar a um Superior Tribunal
de Justiça ampliado, funcionando em turmas, a jurisdição comum de última instância, sobretudo como um tribunal de cassação, para harmonizar os julgados e não para sua estratificação, como se pretende. No sistema proposto -pergunta-se-, para que investir
tanto na formação de juízes?
Bastaria um computador nas salas de audiência para decidir os direitos das partes, segundo o entendimento das cúpulas judiciárias. Não se diz uma única palavra sobre a democratização na escolha dos juízes dos tribunais,
sejam estaduais, sejam federais. Ignorou-se o regime de mandato para os tribunais superiores. Preferiu-se manter em tudo o sistema atual, que se constitui em inegável freio à autonomia do Judiciário.
No capítulo da Justiça Militar estadual,
estabelece-se um sistema no qual, na verdade, ela permanece em sua inteireza, esquecendo-se o relator do atual substitutivo que o policiamento é atividade eminentemente civil, que não se compatibiliza com os princípios de uma Justiça Militar em nenhum
nível que seja. Aliás, perde o relator a oportunidade de agilizar e concretizar emenda constitucional oferecida por seu agora companheiro de partido, que ocupa a Presidência num segundo mandato, para propor dispositivo exatamente na contramão do conteúdo
da referida emenda -ademais, largamente debatida em comissão, a qual em seu relatório, também esquecido, vai no sentido da unificação das Polícias Civil e Militar e, por conseguinte, da eliminação das chamadas Justiças Militares estaduais. Conservar,
como pretende o substitutivo, a primeira instância dessa Justiça é manter o corporativismo que a qualifica, responsável pelo alto índice de impunidade dos crimes cometidos por milicianos, mola propulsora da violência do Estado.
A propósito
de uma das questões mais polêmicas, a criação de um órgão de controle externo do Judiciário (à feição do que se tentara nos estudos para sua reforma promovidos por provocação do general-presidente Ernesto Geisel e contando com a rejeição unânime dos
órgãos das Justiças estaduais por violar, em medida mínima, o pacto federativo), dentre as soluções aventadas, o substitutivo optou pela pior. É só compará-la com as outras apresentadas. Mas, sobre esse assunto, venho sustentando -e até agora não
encontrei motivos para alterar minha posição- que não será com a criação de órgãos burocráticos que vamos resolver o problema do controle externo da magistratura. Este se fará à medida que os seus órgãos se aproximem do povo e que este, com instrumentos
adequados, passe a ser o próprio agente do controle. O resto é pura enganação: e se o órgão não funcionar? Cria-se outro acima dele, e assim por diante, numa cadeia sem fim?
Em verdade, numa velocidade imprópria aos fins a que se destina,
esquecendo trabalhos importantes já realizados, deixando de ouvir -não se perca a cortesia na atuação parlamentar-pessoas que deflagraram o processo de reforma, a comissão especial preocupa-se, sem dúvida, em manter o autoritarismo que tem qualificado
as reformas do texto democrático de 1988. A reforma é, mais uma vez, para modelar um Estado neoliberal, não para o povo. É preciso que surja uma reação -e, em certa medida, ela já se faz sentir pelas vozes autorizadas de eminentes juristas-, para
que possamos ter uma ampla e profunda reflexão sobre uma das questões mais relevantes que se põe ante uma decisão do Parlamento brasileiro, a fim de que a reforma do Poder Judiciário seja tão relevante quanto essa questão -sobretudo para que não venhamos
a dizer mais uma vez que fizemos sem termos feito.