Reginaldo Oscar de Castro
Há uma relação paradoxal da sociedade brasileira com a advocacia. De um lado, a categoria sofre o desgaste decorrente da ineficiência da estrutura judiciária do país. Se a Justiça funciona mal ou simplesmente não funciona, os personagens que em torno
dela gravitam, ainda que também vítimas de sua ineficiência, sofrem as consequências.
De outro lado, a advocacia continua sendo referência vital nas questões que envolvem a cidadania. A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) tem sido, ao longo de sua história, uma das instituições mais presentes nas lutas da sociedade civil em
defesa de seus direitos.
Foi assim no tempo do Estado Novo e da ditadura militar pós-64. E foi assim em momentos decisivos deste final de século, como a campanha das diretas, a da Constituinte e o impeachment de Collor, para citar só três.
Nessa relação paradoxal, apesar dos pesares, acaba predominando a face positiva da advocacia. Por um motivo simples: é, provavelmente, uma das raras corporações profissionais que se habituou a discutir em público suas deficiências.
Recentemente,
por exemplo, a OAB lançou campanha pública por ética na advocacia. Reconheceu a existência de distorções no setor e se comprometeu a combatê-las. Entre nós, o Tribunal de Ética funciona de fato, e as punições têm sido constantes. Nós atribuímos esses
desvios de conduta não só às deficiências da estrutura judiciária brasileira, matriz de tantas mazelas, mas também à precariedade de grande parte dos cursos jurídicos do país.
Essa tem sido uma das bandeiras fundamentais da OAB: a luta pelo
aprimoramento dos cursos jurídicos, que formam não apenas advogados, mas todo o amplo elenco dos atores da cena judiciária -juízes, procuradores, promotores, lideranças políticas etc.
A queda de qualidade no ensino superior brasileiro, fruto
da reforma a que ele foi submetido durante o regime militar, nos anos 70, deixou marcas terríveis no campo do Direito. Foi quando começaram a se multiplicar faculdades de fachada, cursos de fim-de-semana, arapucas destinadas a produzir diplomas em
série e a faturar. O advento do provão, instituído pelo Ministério da Educação para aferir a qualidade do ensino superior do país, desmascarou numerosas dessas instituições, cuja atuação a OAB vem denunciando sistematicamente há anos.
Conhecimento
e ética tendem a caminhar juntos. Um profissional malformado é mais vulnerável aos desvios de conduta, menos zeloso dos pressupostos éticos e morais inerentes ao ofício. Muitas vezes, transgride códigos básicos de conduta por simplesmente desconhecê-los.
Outro ponto de obsessiva atuação da advocacia brasileira refere-se ao caráter urgente da reforma do Poder Judiciário. Bem antes de o poder político sensibilizar-se com a questão, a OAB já a vinha apontando como inadiável.
A eficácia
e a utilidade social da advocacia dependem da saúde das instituições jurídicas do Estado. Se elas funcionam mal -e não há dúvida de que esse é o caso brasileiro-, a demanda por serviços profissionais dos advogados cai. Se funcionam bem, a demanda
aumenta. É por essa razão que, mesmo quando trata de temas meramente corporativos, o advogado cuida do interesse público.
Não é casual o fato de o estatuto da OAB (artigo 14, inciso I), antes de tratar de questões meramente corporativas, comprometer
o advogado com a defesa da ordem jurídica, da justiça social e dos direitos humanos. Esse é o compromisso primeiro, que torna indissociável o interesse classista, legítimo, do interesse público. Portanto, quando nos acusam de corporativistas (no sentido
pejorativo que o termo adquiriu), constatamos que ou há má-fé ou há desconhecimento da questão -ou ambas as coisas. Quando a advocacia postou-se na trincheira democrática, assumindo a vanguarda da resistência à ditadura nas diversas ocasiões em que
o país se viu privado de suas liberdades fundamentais, fez isso de acordo com seus pressupostos estatutários de defesa da ordem jurídica.
E é dentro desse mesmo compromisso que a advocacia brasileira condena diversas proposições constantes do relatório da reforma do Judiciário, que será votado nas próximas semanas pela Câmara. Nós nos opomos à excessiva concentração de poderes
nos tribunais superiores em decorrência da adoção da súmula vinculante, das avocatórias, da extinção da Justiça do Trabalho; isso, sem dúvida, reduzirá a independência dos juízes.
Neste Dia do Advogado, mais do que nunca, é o interesse do
conjunto da sociedade brasileira, precariamente contemplado na proposta de reforma em tramitação no Congresso, que nos mobiliza. Por razões éticas e, sobretudo, filosóficas.