Celso de Mello

funções polítiacas do Poder Judiciário.
O juiz, no plano de nossa organização institucional, representa o órgão estatal incumbido de concretizar as liberdades públicas proclamadas pela declaração constitucional de direitos. Assiste-lhe
o dever de atuar como o instrumento da Constituição na defesa incondicional e na garantia efetiva dos direitos fundamentais da pessoa humana. Essa é a missão socialmente mais importante e politicamente mais sensível que se impõe ao magistrado consciente
dos graves deveres ético-jurídicos que pautam o correto desempenho da atividade jurisdicional.
É que de nada valerão os direitos e de nada significarão as liberdades, se os fundamentos em que eles se apóiam – além de desrespeitados pelo Poder
Público – também deixarem de contar com o suporte e o apoio da ação conseqüente e responsável do Poder Judiciário.
Daí a necessidade de enfatizar, a cada momento, que o Poder Judiciário tem um compromisso histórico e moral com a luta pelas
liberdades e, também, com a preservação dos valores fundamentais que protegem a essencial dignidade da pessoa humana.
Sem que se reconheça a toda e qualquer pessoa o direito que ela tem de possuir e titularizar outros direitos, frustrar-se-á
– com conquista verdadeiramente inútil – o acesso ao regime das liberdades públicas.
É preciso construir a cidadania a partir do reconhecimento de que assiste a toda e qualquer pessoa uma prerrogativa básica que se qualifica como fator de
viabilização dos demais direitos e liberdades. Torna-se imperioso reconhecer que toda pessoa tem direito a ter direitos.
Sem se reconhecer a realidade de que a cidadania impõe ao Estado o dever de atribuir aos desprivilegiados – verdadeiros
marginais do sistema jurídico nacional – a condição essencial de titulares do direito de serem reconhecidos como pessoas investidas de dignidade e merecedoras do respeito social, não se tornará possível construir o sonho da igualdade e nem o de realizar
a edificação de uma sociedade justa e fraterna.
O fato grave e dramático que atinge os socialmente excluídos – e que se tornam, também eles, por efeito causal, vítimas injustas dessa perversa exclusão de ordem jurídica – reside na circunstância
de que a condição de despossuídos acaba gerando a perda de um essencial elemento de conexão que lhes garanta uma exata e bem definida posição em nosso sistema político e jurídico.
Com os socialmente excluídos está em causa, portanto, o próprio
reconhecimento – tão essencial à preservação da dignidade individual – de que à pessoa humana assiste o direito a ter direitos.
A exclusão de ordem jurídica – que representa um subproduto perverso derivado da exclusão social -, gerada e impulsionada
pela injusta condição social que tão gravemente afeta os que nada têm, acaba por frustrar a possibilidade de defesa jurisdicional das prerrogativas jurídicas que competem, de maneira indisponível, a cada ser humano.
No processo de construção
da igualdade e de consolidação da cidadania, revela-se essencial organizar um modelo institucional que viabilize o efetivo acesso de todos – notadamente das pessoas despossuídas – ao sistema de administração de Justiça, para que o reconhecimento constitucional
dos direitos e das liberdades não se transforme em um inútil exercício de justas expectativas fraudadas pela omissão inconseqüente do Poder Público.
A proteção jurisdicional, ao materializar o acesso à Justiça, permite tornar efetivos e reais
os direitos abstratamente proclamados pela ordem normativa.
A frustração do acesso ao aparelho judiciário do Estado, motivada pelo injusto inadimplemento do dever governamental de conferir expressão concreta à norma constitucional que assegura
aos necessitados integral assistência de ordem jurídica (Constituição Federal, artigo 5º, n.74), culmina por gerar situação socialmente intolerável e juridicamente inaceitável.
Não se pode desconhecer que o povo brasileiro ainda não tem acesso
pleno ao Poder Judiciário. Essa é uma realidade inquietante, cujo reconhecimento, no entanto, importa fazer, pois, no seio de uma sociedade fundada em bases democráticas e regida por importantes postulados de ordem republicana, nada pode justificar
a exclusão de multidões de pessoas do acesso essencial à jurisdição do Estado.
Cumpre dotar o Estado de uma organização formal e material que lhe permita realizar, na expressão concreta de sua atuação, o dever que lhe impôs a própria Constituição
da República: proporcionar, efetivamente, aos necessitados, plena e integral assistência jurídica, para que os direitos e as liberdades não se convertam em proclamações inúteis ou em declarções meramente retóricas.
É preciso – em prejuízo
de outras medidas igualmente necessárias – instituir, consolidar e aparelhar, em todo o país, as Defensorias Públicas, cuja importância, nesse processo de construção da cidadania, reveste-se de relevo indiscutível.
A democratização do acesso
à Justiça revela-se um inadiável programa estatal, cuja implementação terá a virtude de iniciar o processo de reinserção e reincorporação dos despossuídos ao sistema de direito do qual se acham injustamente excluídos, permitindo que o postulado da
igualdade – fundamento verdadeiro do processo de construção da cidadania – tenha, finalmente, plena, conseqüente e definitiva realização.