Demócrito Ramos Reinaldo Filho
A Lei 9.307, de 23.09.96, que se tornou conhecida como ‘‘Lei Marco Maciel’’, veio a lume como fruto de um esforço tendente a revitalizar o instituto do juízo arbitral. No sentido, portanto, de oferecer uma alternativa ao jurisdicionado na solução de conflitos
patrimoniais privados, caminhou o editor da Lei 9.307/96, procurando corrigir o principal ponto de enfraquecimento e desuso do juízo arbitral — a necessidade da homologação do laudo por sentença de juiz togado (o revogado art. 1.096 do CPC predispunha
que, somente depois de homologado, o laudo arbitral produzia os mesmos efeitos da sentença judiciária e que, contendo condenação, a homologação lhe conferia a eficácia de título executivo). Nos moldes em que estava desenhado no Código de Processo
Civil, tornou-se um instituto sem maior incidência na prática e sem o prestígio internacional da arbitragem, justamente em função da circunstância de que era ordenado e vigiado pelo Estado, havendo sempre a necessidade de um pronunciamento judicial
(sentença homologatória) para que o laudo arbitral adquirisse a qualidade de título executivo judicial (o art. 41 da Lei 9.307/96 dá nova redação ao inc. III do art. 584 do CPC, incluindo como título executivo judicial a ‘‘sentença arbitral’’. Na
sua redação antiga, havia previsão de ‘‘sentença homologatória de laudo arbitral’’). Agora tal exigência é dispensável, pois, nos termos do art. 31 da Lei Especial, ‘‘a sentença arbitral produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos
da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário e, sendo condenatória, constitui título executivo’’.
Essa substancial alteração na figura do juízo arbitral, no entanto, reacendeu antiga discussão sobre a constitucionalidade do
instituto. Novamente, aqueles sempre contrários à implementação de qualquer modelo alternativo de composição de conflitos intersubjetivos voltam suas baterias contra o juízo arbitral, reanimados pela inovação introduzida — de que a sentença que o
árbitro proferir não fica sujeita a recurso ou homologação pelo Poder Judiciário (art. 18 da Lei 9.307/96), adquirindo força e autoridade de coisa julgada material, passível de execução como título executivo de natureza judicial, em sendo condenatória.
Argumentam que essa circunstância termina por ferir definitivamente vários direitos e garantias fundamentais assegurados na Constituição Federal, dentre eles o princípio de que ‘‘A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça
a direito’’ (art. 5º, inc. XXXV).
Somos dos que pensam ser juridicamente possível a quebra do monopólio estatal da prestação jurisdicional sem que haja, em contrapartida, desrespeito ao princípio do controle judicial dos atos ameaçadores
ou lesionadores de direitos. Diga-se, a propósito, que um genuíno monopólio estatal na entrega da prestação jurisdicional nunca existiu, na esfera a legislação pátria. O juízo arbitral, mesmo nos moldes em que antes estava delineado no corpo do CPC,
já configurava uma espécie de justiça privada (ainda recebe o nome de jurisdição privada, exercida por juízes privados, configurando uma alternativa à jurisdição estatal), porquanto por meio dele as partes excluíam da cognição judicial a lide existente
entre elas (cf. Clóvis do Couto e Silva, ‘‘Comentários ao Código de Processo Civil’’, vol. XI, Tomo II, cit., nº 642, p. 564). Além disso, o nosso sistema jurídico admite a transação, figura jurídica que se aproxima do juízo arbitral (o juízo arbitral
assemelha-se à transação e, tanto quanto possível, deve seguir-lhe as regras — previa o revogado art. 1.048 do C.C. O ponto de contato entre um instituto e outro reside preponderantemente na circunstância de que em todas as hipóteses em que ficar
caracterizada a inadmissibilidade da transação, também não será cabível a solução por meio de arbitragem), comosp; Também o à disposição dos contendores para a solução de suas pendência, nada observa d o efeito de coisa julgada (art. 1.030, do
C.C.), somente admitindo rescisão em casos de dolo, violência ou erro essencial quanto à pessoa ou coisa controversa.
Com a celebração da convenção de arbitragem, as partes apenas transferem, deslocam a jurisdição para um destinatário privado.
O ato de escolha de um árbitro para solucionar-lhes a pendência não significa renúncia ao direito de ação (cf. José Frederico Marques, in ‘‘Instituições de Direito Processual Civil’’ vol. V, 3ªed., Rio de Janeiro, Forense, 1971, nº 1.330, p. 278,
já se posicionava no sentido de que o juízo arbitral não constitui ofensa ao direito de ação. No mesmo sentido, Pontes de Miranda, ‘‘Comentários ao Código de Processo Civil’’, Tomo XV, Rio de Janeiro, Forense, 1977, p. 224), mas antes um livre ajuste
na forma pela qual se comprometem a pôr fim a uma lide envolvendo direitos disponíveis. E reside justamente nessa circunstância — a de que a convenção de arbitragem só pode versar sobre direitos disponíveis — a legitimação para agirem dessa maneira.
Como a convenção de arbitragem só pode versar sobre matéria de direito disponível, é lícito às partes assim procederem. Ora, se a convenção entre particulares é a causa principal geradora de direitos e obrigações na ordem jurídica privada, parece
mesmo lógico que possam também utilizá-la para resolvê-los ou extingui-los. Se o titular de um direito disponível pode renunciá-lo, por que não, então, admitir-se possa ele escolher a forma de solver controvérsia em torno desse mesmo direito? Por
essa razão é que entendemos que a instituição do juízo arbitral, mesmo com a dispensa da homologação por juiz togado da decisão do árbitro, não constitui ofensa a qualquer princípio constitucional. Não se nega o acesso do cidadão ao Judiciário, apenas
permite que ele, o próprio titular do direito material, decida sobre a forma de solucionar a questão em torno desse direito (disponível), se por meio da jurisdição estatal, oferecida pelos órgãos judiciários, ou se através de uma jurisdição alternativa,
privada, em que pessoas escolhidas por ele próprio (os árbitros), e que, portanto, gozam de sua confiança, apresentem a solução para um caso a que estão ais habilitadas a resolver por força de seus conhecimentos especializados. Sempre que houver lesão
ou ameaça de direito patrimonial e a parte afetada não aceitar a arbitragem, restará em todos os casos aberta a possibilidade de se requerer a tutela estatal, ou seja, de acionar o Judiciário.
O problema, como se vê, consiste no entendimento
do que seja jurisdição, que deve ser vista não como um atributo exclusivamente conferido ao Estado, mas também a outras pessoas eleitas pelos interessados para, em casos concretos, comporem conflitos intersubjetivos, resolvendo-os de acordo com a
lei, os costumes, a jurisprudência, os princípios gerais do direito e a eqüidade. Nesse sentido vem a calho o ensinamento de Nelson Nery Júnior (‘‘Comentários ao Código de Defesa do Consumidor,’’ Forense, págs. 357 e 358), para quem a instituição
do juízo arbitral não ofende o inc. XXXV do art. 5º da CF, justamente porque a prestação da jurisdição não é atributo exclusivo do Estado, ao prelecionar:
‘‘Não se pode tolerar, por flagrante inconstitucionalidade, a exclusão, pela lei, da
apreciação de lesão a direito pelo Poder Judiciário, que não é o caso do juízo arbitral. O que se exclui pelo compromisso arbitral é o acesso à via judicial, mas não à jurisdição. Não se poderá ir a justiça estatal, mas a lide será resolvida pela
justiça arbitral. Em ambas há, por óbvio, a atividade jurisdicional.
Tal pronunciamento conforta em muito a corrente doutrinária que atribui à arbitragem natureza jurisdicional. E essa corrente, realmente, parece coberta de razão, na medida
em que se observa que os árbitros são escolhidos pelas partes, mas é da lei — à semelhança do que acontece com o juiz togado — que deriva o seu poder de julgar.
Para reforçar a tese da inconstitucionalidade da Lei 9.307/96, sustenta-se ainda
que o juízo arbitral ofende o princípio da ‘‘ampla defesa, formalmente asseguradora do due process of law’’ (CF, art. 5º, LIV e LV).
Não podemos concordar com tal posicionamento.
O instituto do juízo arbitral tem na simplificação
do procedimento uma de suas notas marcantes, porque, como se sabe, é da simplificação dos ritos que decorre a celeridade, esta apresentando-se como uma das principais vantagens sobre o processo judicial. Utilizando-se somente o indispensável, garante-se
a praticidade e, conseqüentemente, a brevidade, sem se sacrificar qualquer direito das partes. Com efeito, conquanto não se preveja uma ampla ‘‘liturgia’’ para os atos a serem providos sob o comando do árbitro, é imprescindível que observe o princípio
do contraditório, organizando a atividade instrutória em atenção ao ‘‘due process of law’’, como mínimo que se exige para a manutenção do equilíbrio no tratamento das partes. Mesmo sem formas predeterminadas, a que estaria subordinado o cumprimento
dos atos e trâmites do processo, a partir da instauração do juízo arbitral, não se pode dispensar o tratamento equânime das partes, na produção de atos instrutórios e defesa de seus respectivos interesses. O processo de arbitragem, qualquer que seja
sua moldura, encontra na observância ao princípio do contraditório o requisito mínimo a que está condicionada a atividade do árbitro. Nesse sentido a legislação especial (Lei 9.307/96) é bem clara quando predispõe, no parágrafo 2º do art. 21, que
‘‘serão, sempre, respeitados no procedimento arbitral os princípios do contraditório’’ e ‘‘da igualdade das partes’’.
Ainda como empecilho de ordem constitucional à sobrevivência da ‘‘Lei Marco Maciel’’, argumentam os seus opositores que
ela atenta também contra o ‘‘princípio do juiz natural’’.
O princípio do juiz natural, como se sabe, tem a ver com a garantia do jurisdicionado que sua causa seja processada perante o juiz cuja competência decorra das leis processuais. Como,
em nosso sistema normativo, a própria Constituição distribui entre os diversos órgãos judiciários as atribuições jurisdicionais, delineando em primeiro plano as diferentes competências, diz-se que o princípio em questão tem fonte constitucional. Fundamentados
nessa observação, alegam aqueles que estão em posição contrária à Lei 9.307/96, que ‘‘a lei ordinária não pode, por si só, modificar a jurisdição conferida a juízes e tribunais’’.
De nossa parte, consideramos equivocado tal ponto de vista.
O que a Constituição faz é distribuir a competência entre os diversos órgãos judiciários, ou seja, reparte a competência derivada da jurisdição estatal, cuja distribuição fica a cargo desses órgãos, dependendo da natureza de cada demanda.
O princípio do juiz natural, assim, tem a ver com a jurisdição estatal. Em outras palavras, é impostergável quando se trata de causa submetida à jurisdição estatal. Tem aplicação quando o litígio vem a ter curso na esfera da jurisdição estatal. Optando
por requerer a tutela jurisdicional conferida pelo Estado, a parte não pode escolher o juízo por onde correrá o processo, mas submeter-se às regras definidoras de competência, as quais indicam o órgão judiciário com poderes para ojulgamento da causa.
O poder de julgar nesse caso é exercido em nome do Estado, como expressão de sua soberania. Quando se desenvolve atividade estatal, a ninguém é dado a faculdade de exercer funções cometidas com exclusividade ao órgão competente segundo as normas de
ordem pública.
Quando, por outro lado, as partes optam por resolver a pendenga em sede do juízo arbitral, nessa hipótese a solução não requer a atuação do corpo estatal, do Estado-juiz. As partes resolvem seus interesses (disponíveis) na
órbita privada de seus negócios, não havendo que se falar em ajustamento ao ‘‘princípio do juiz natural’’. A jurisdição estatal não é provocada para dar uma solução ao caso. A solvência, ao contrário, resulta da livre autonomia das partes, por meio
da escolha de um intermediário que resolve a contenda.
É indispensável a observação de que, a despeito da alteração trazida com a dispensa de homologação da decisão arbitral, a Lei 9.307/96 optou por escolher o caminho da manutenção do modelo
atual, deixando a arbitragem como opção convencional e subsidiária de jurisdição, daí porque somente foram necessárias mudanças na legislação que trata do juízo arbitral (legislação infraconstitucional — Código Civil e Código de Processo Civil). Não
houve invasão da esfera de atuação do Judiciário, cujos diversos órgãos, singulares ou colegiados, da Justiça Comum ou das Justiças especializadas, continuam com a mesma competência. Se, por acaso, a opção política tivesse sido diversa, no sentido
de transferir parte do poder jurisdicional estatal ao juízo arbitral, extirpando-se parcela da competência dos órgãos judiciários e restringindo sua atuação àquelas causas em que, pela sua natureza, não pudessem ser resolvidas no juízo privado, aí
sim seria necessária uma alteração na própria Constituição, sob pena de restar malferidos vários princípios de cepa constitucional, entre eles o do juiz natural e aquele que impede a criação de juízo ou tribunal de exceção (art. 5º, XXXVII).