Almino Affonso
Com os episódios relacionados ao deputado Sérgio Naya, que provocaram justificada revolta na opinião pública, o tema da imunidade parlamentar veio à tona, reacendendo comentários da imprensa e debates na Câmara.
A polêmica sobre o tema vem de longe. Consideram os que se apressam na análise dos alcances da imunidade que esse instituto, não obstante propor-se a preservar a mais ampla liberdade de deputados e senadores no exercício da representação política,
vem se convertendo em instrumento de impunidade. Sensível a essa visão, que nem sempre expressa a verdade dos fatos, o deputado Domingos Dutra -hoje vice-prefeito de São Luís- apresentou, nesta legislatura, projeto de emenda constitucional dando novo
tratamento à matéria, suprimindo o requisito de licença prévia para processar e julgar os membros do Congresso. Outros parlamentares, como os deputados Álvaro Gaudêncio e Célia Mendes, tiveram iniciativas semelhantes, tendentes a restringir os alcances
da imunidade. Por fim, coroando essa inquietação legislativa, o deputado Ibrahim Abi-Ackel -um dos mais renomados juristas que dignificam a Câmara dos Deputados- também formulou emenda constitucional que, a meu ver, guardando o espírito que orientou
as proposições anteriores, deu à questão um acabamento mais refinado.
Como relator dessas proposições na Comissão de Constituição e Justiça, apresentei substitutivo que, sem anular a prerrogativa da imunidade, exime os representantes do povo de uma crítica que nos fere a todos, com frequência vistos como protegendo
uns aos outros, na medida em que, negando a licença prévia para que se instaure o processo, cerceamos o exercício da Justiça. O substitutivo, se aprovado na Câmara, implicará as seguintes modificações fundamentais: nos casos de crimes comuns, o Supremo
Tribunal Federal, para processar e julgar o parlamentar, não dependerá de licença prévia da Câmara ou do Senado. Instaurada a ação penal, o STF apenas dará ciência à Casa respectiva. A medida inverte, como se vê, a dinâmica processual. Já não se poderá
arguir, pela demora da decisão da Câmara ou pela denegatória da licença prévia, que parlamentares acusados da prática de crimes comuns são acobertados por seus pares.
É verdade que, na vigência da norma constitucional de 1988, a tardança ou a negativa na licença de processar o parlamentar apenas protela o início da ação penal, já que a prescrição fica suspensa. Contudo o simples adiamento sugere proteção.
Com a nova redação, o parlamentar passa, desde logo, a responder pelo processo criminal.
De todo modo, para evitar eventuais perseguições políticas talvez embutidas numa ação penal, o substitutivo -incorporando a proposição do deputado Abi-Ackel- estabelece que, a qualquer tempo, podem a Câmara e o Senado sustar o processo já
tramitando no STF, desde que, por maioria absoluta de votos, assim decidam.
Pode-se argumentar que, com essa válvula de escape, tudo continuará como dantes no quartel de Abrantes. Mas não procede a insegurança.
Para que o Parlamento ouse entravar a tramitação do processo já instaurado no STF, é preciso ter a seu favor uma inquestionável argumentação jurídica e moral, apoiada, ademais, pela vontade política de uma sólida maioria. Mesmo assim -como
argumento final-, o Parlamento estaria tão-somente adiando o desfecho processual, porque a prescrição estaria suspensa e a ação penal retomaria a sua marcha ao término do mandato parlamentar.
Outra inovação marcante, de irrecusável significado democrático, que o substitutivo contempla consiste no fato de que, nos crimes dolosos contra a vida, os parlamentares serão julgados pelo tribunal do júri, deixando de ter direito ao foro
privilegiado do STF.
Como é natural, mantêm-se as duas normas clássicas que remontam à Constituição republicana de 1891: a inviolabilidade dos deputados e senadores, civil e penalmente, no exercício do mandato, por opiniões, palavras e votos; e a garantia de não
serem presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, desde a expedição do diploma. Constituem uma couraça jurídica, sem a qual o parlamentar estará exposto às sanções dos governantes.
Na verdade, esse é um princípio -como lembra o deputado Abi-Ackel- proclamado no “Bill of Rights” de 1689: “A liberdade da palavra, da discussão e dos atos parlamentares não pode ser objeto de exame perante nenhum tribunal e em nenhum lugar
que não sejam o próprio Parlamento”.