Eustáquio Silveira
Na clássica divisão de funções estatais, idealizada por Montesquieu, sabemos que, em princípio, cabe ao Executivo a administração, de acordo com as leis; ao Legislativo, a elaboração dessas leis; e ao Judiciário, a aplicação das normas aos casos concretos
que lhe são submetidos. Cada um dos poderes deverá exercer a sua função independentemente, embora a convivência deles deva ser harmônica. Isso não impede, contudo, que, eventualmente, um exerça função que, de regra, seria do outro. No caso do Judiciário,
não se lhe nega a administração de seus próprios interesses, bem como não se pode afirmar que lhe seja defeso legislar. Porém, tal só acontece quando existe, na base, uma lei, elaborada pelo poder competente (o Legislativo), que o autorize a assim
proceder.
É que, em nosso sistema jurídico, que deita raízes na cultura romano-germânica, a lei é a fonte primária do direito e quem a edita é o povo, diretamente (a exemplo de alguns cantões da Suíça), ou através de seus representantes no Parlamento.
Essas leis é que deverão, portanto, reger a vida em sociedade.
Sem dúvida, existem outras fontes do direito, mas, qualquer uma delas, só terá autoridade compulsória se respaldada na lei.
Pergunta-se, então: existindo uma lei que regule determinada hipótese, poderá o aplicador, mais precisamente o juiz, deixar de aplicá-la, sob o argumento de que a norma não representa o direito, o justo? Pior: poderá, o juiz, nesse caso,
estabelecer a sua própria norma, como se legislador fosse, e dar a solução que lhe pareça a mais justa?
Se esse é o Direito Alternativo de que se fala, os seus seguidores e apologistas estão fadados ao insucesso.
Primeiramente, essa tentativa de se difundir uma idéia de um Direito contra legem não é nova. Pelo contrário, é velha, do século passado. Iniciou-se, de maneira ainda tímida, com a escola da Livre Indagação de François Geny e de Eugen Ehrlich,
que, sem exageros, pregava que a lei é o ponto de partida de qualquer interpretação, embora devesse ser compreendida não somente à luz dos preceitos lógicos, mas também de acordo com as idéias, aspirações e interesses legítimos da coletividade. Em
posição extremada, surgiu, em 1906, a turma chefiada por Kantorowicz em busca do Direito justo (richtiges Recht”), para tanto autorizando o juiz a desprezar os textos e a seguir os ditames de sua consciência. Essa escola, contudo, não passou de um
modismo, que, vez por outra, alguém em busca de notoriedade procura ressuscitar.
Imaginem se cada juiz puder afastar a aplicação do texto legal, impessoal e geral, para fazer valer a sua vontade particular. A segurança jurídica estaria irremediavelmente comprometida, passando as decisões judiciais a se constituírem em
verdadeira loteria, onde o cidadão nunca poderia ter certeza do seu direito. Como afirma o mestre Maximiliano (1): ”Substituir a lei (vontade geral) pelo juiz (critério individual), conforme pretende a corte chefiada pelo professor Kantorowicz, seria
retrogradar; a evolução realizou-se no sentido inverso, ao de sobrepor a vontade coletiva à de um só”. Desse modo, não pode o juiz, que não é legislador, deixar de aplicar a lei pré-existente para solucionar o litígio como melhor lhe aprouver, porque
isso não passa de arrogância, de desejo de onipotência, que certamente o conduzirá à desconfiança popular.
Não existe pior ditadura do que a dos juízes, e isso é o que ocorreria se cada magistrado estivesse autorizado a fazer valer a sua própria lei. Ainda mais no Brasil, onde se sabe, a magistratura nem sempre é escolhida entre homens de inabalável
valor intelectual e moral, como pressupunha a teoria da escola do Direito justo.
Diferentemente do que pregam os ansiosos pelo poder judicial absoluto, a função do juiz é a de interpretar a lei, ou seja, a de determinar-lhe o sentido e o alcance. Isso não significa dizer que o magistrado é mero aplicador da lei, pois,
antes de fazê-lo, ele deve interpretar o texto legal, muitas vezes completando-o, até mesmo melhorando-o, numa interpretação que atenda aos valores e às finalidades nele contidos. O que não pode é negar a lei, decidir contra sua disposição, até porque,
se assim o fizer, sua sentença estará sujeita a rescisão.
Por outro lado, os pregadores do Direito Alternativo se esquecem que o juiz só é juiz porque existe a lei. Fora da lei, ele não está na sua função jurisdicional (desculpem o trocadilho)!
Ademais, no contexto do direito positivo brasileiro, o juiz é obrigado a se ater à lei, só podendo agir como legislador à falta de norma escrita, significando dizer que ele pode agir proeter legem, mas nunca contra legem.
Enfim, se as leis são boas ou más, não cumpre ao juiz substituí-las por suas próprias normas, mesmo porque quem tem o mandato para editar as regras são os parlamentares, soberanamente eleitos pelo povo, que, através deles, se autogoverna.
Ao magistrado incumbe interpretar o texto, não se esquecendo, porém, de que a lei não é apenas letra fria, mas um corpo vivo que precisa ser compreendido, de modo que os seus princípios se estendam às hipóteses particulares, por uma aplicação prudente
e racionada, como já preconizava o preceito de Portalis (2).
NOTAS:
(1) Maximiliano, Carlos — ”Hermenêutica e Aplicação do Direito”, For., 9ªEd., p. 79.
(2) Anexado ao projeto do Código Civil Francês: ”Estenda os princípios dos textos às hipóteses particulares, por uma aplicação prudente e racionada;
apodere-se dos interesses que a lei não satisfaz, proteja-os e, por meio de tentativas contínuas, faça-os predominar.”