João Carlos Mayer Soares
O Poder Legislativo tem por perfil jurídico-institucional o exercício de três funções estatais básicas: a função legislativa, a função representativa e a função fiscalizadora. Dessa maneira, além da sua atribuição de fazer leis para o bem da coletividade,
o Poder Legislativo é responsável pela inspeção dos administradores públicos, fiscalização dos serviços públicos e averiguação do modo como as leis são executadas.
Como tem sido reconhecido no decorrer da história dos povos, o poder de fiscalizar é inerente ao poder de legislar, sendo dele ancilar, ainda que não exista norma constitucional expressa.
Nessa linha de pensar, as constituições nacionais, desde 1934, vêm explicitamente referindo-se a esse poder assumindo a comissão de inquérito a posição de instrumento de maior destaque (art. 58, § 3º, da CF/88).
Apesar de sua amplitude, já que envolve a possibilidade de investigação dos fatos que possam ser objeto de legislação, deliberação, controle e fiscalização por parte de entidades e órgãos da estrutura administrativa do Estado, o congressional
power of investigation não é onipotente, irrestrito e absoluto, possuindo limitações, que são o nosso ponto de maior interesse, porque ali residem as questões de maior indagação.
As limitações podem ser divididas em formais e materiais. As primeiras dizem respeito à necessidade da apuração de fato determinado em prazo certo, à apresentação de requerimento de um terço dos membros da Casa e à proporcionalidade da representação
partidária. As segundas cuidam do chamado propósito legislativo válido, da competência para legislar sobre a matéria objeto da investigação, da separação entre os poderes e da inviolabilidade dos direitos e garantias individuais e coletivos.
O requisito do fato determinado em prazo certo está ligado à exigência de que a investigação, pelo seu caráter excepcional, não se torne algo vago, sem objetivos legislativos concretos e definidos, expondo cidadãos e instituições à suspeição
pública por período indeterminado. Por outro lado, a averiguação de fato previamente individualizado e delimitado não impede que sejam investigados fatos que se ligam, intimamente, com o fato principal, sob pena de engessar o trabalho investigatório
e restringir o texto constitucional, que se apresenta amplo. Da mesma forma, o prazo para as investigações pode ser prorrogado até o término da legislatura (art. 5º, § 2º, da Lei 1.579/52).
A primeira limitação de ordem material a ser abordada é aquela que trata do propósito legislativo válido. Toda investigação precisa estar amparada em uma finalidade legislativa válida, um official purpose, isto é, o Legislativo deve anunciar
uma finalidade legislativa legítima para a investigação.
Nota-se, portanto, que para a plena compreensão do tema, faz-se necessário precisar o fim a que se destina a comissão parlamentar de inquérito. A finalidade de uma CPI é a coleta de informações para fins da elaboração de norma legislativa,
presente ou potencial. Nesse sentido, orientou-se o Pretório Excelso norte-americano em Barsky v. United States (334 U.S. 843) e Berenblatt v. United States (360 U.S. 109).
Dessa maneira, equivocam-se aqueles que admitem que as CPIs, independentemente de uma finalidade legislativa válida, podem servir de instrumento para o exercício de atividade meramente fiscalizatória do Poder Legislativo. Em Watkins v. United
States (354 U.S. 178), a Corte Constitucional norte-americana deixou claro que direitos e garantias civis não devem ser colocados em perigo em virtude da ausência de uma necessidade legislativa específica.
Como se sabe, a investigação não é um fim em sim mesmo, somente se justificando quando funciona como um mecanismo de auxílio ao processo legislativo, segundo bem expôs o Chief Justice Warren, por oportunidade do referido Watkins v. United
States.
Uma das mais importantes limitações ao poder de investigar é aquela que cuida da separação entre os Poderes. Consoante ficou realçado em Barenblatt v. United States, já referido, o princípio da separação de Poderes (art. 2º da Constituição
brasileira) impede que as investigações legislativas incorram no exame de matérias que sejam de atribuição exclusiva de outro poder. Não se deve confundir, no entanto, as atribuições institucionais peculiares a cada um dos poderes com a gama de atos
que são por eles praticados. O Executivo, além de governar, o Legislativo, de legislar, e o Judiciário, de prestar jurisdição, praticam atos que fogem a sua função estatal precípua, atos de gestão administrativa, que, pela sua natureza, podem ser
objeto de investigação parlamentar destinada à aquisição de um propósito legislativo válido tendente ao bem comum. Desse modo, qualquer ato de improbidade administrativa, seja decorrente de corrupção, ineficiência ou desperdício, praticado pelos poderes
constituídos pode ser investigado pelo Parlamento.
Não podem ser fruto de investigação parlamentar aqueles assuntos que devam receber solução por intermédio de prestação jurisdicional a ser provida pelo Estado-juiz. Essa diretriz ficou marcadamente exteriorizada no célebre aresto Kilbourn
v. Thompson (103 U.S. 168), com a opinião da Corte redigida pelo Justice Miller. Não se pode negar que a investigação, muitas vezes, assemelha-se a um julgamento, no sentido de que acusações contra indivíduos e instituições estão envolvidas, o que
não significa que tenha havido usurpação da competência jurisdicional.
O elemento diferenciador reside na finalidade da investigação. Na investigação legislativa busca-se o propósito legislativo válido; na judicial, a aplicação da lei na solução do litígio.
Em outras palavras, a investigação levada a cabo pelo Legislativo não pode ter por escopo o julgamento de pessoas e fatos. Tomemos o exemplo de investigações envolvendo situações de suposta improbidade administrativa. À comissão de inquérito
incumbe a missão de, uma vez constatada a suposta prática irregular, fornecer sugestões para a alteração da legislação vigente no intuito de que se evite ou coiba o surgimento das praxes abusivas ou, na hipótese de vácuo legislativo, sugerir a edição
de regramento legal específico. Com efeito, qualquer medida que extrapolasse esse campo de atuação importaria em usurpação da função judicial, haja vista que nos moldes do caso apresentado, seria atribuição dos órgãos jurisdicionais a exata individualização
do ato de improbidade, se concluir que houve algum, a identificação do(s) seu(s) autor(es) e a punição que sobre ele(s) deveria recair. Aliás, o texto constitucional não deixa margem para dúvidas quando prevê que, se for o caso, as conclusões da comissão
de inquérito serão encaminhadas ao Ministério Publico para que promova a responsabilidade civil e criminal dos infratores, caso assim, obviamente, o julgue apropriado (art. 58, § 3º).
Ponto dos mais relevantes refere-se à possibilidade da condução de investigação parlamentar sobre fatos que já se encontrem sob apreciação judicial. Em Kilbourn v. Thompson concluiu-se que esse tipo de investigação importaria em uma interferência
indevida do Legislativo sobre uma ação judicial pendente de julgamento perante a corte jurisdicional competente — invasion of the province of the judiciary. O Pretório chegou à conclusão de que o foro apropriado para o ‘‘remédio’’ que se almejava
era o judicial e que o ‘‘alívio’’ não seria obtido junto ao Legislativo, poder com funções exclusivamente legislativas, desprovido de instrumentos e procedimentos adequados para o tratamento da ‘‘moléstia’’.
Assim, revela-se inquestionável que a análise e a valorização do ato de vontade manifestado pelo órgão jurisdicional, ao proferir sua decisão, não pode ser objeto da investigação do Parlamento, por implicar afronta tanto ao princípio da separação
de Poderes quanto ao de independência funcional do juiz.
Em Quinn v. United States (349 U.S. 155), o culto Chief Justice Warren, salientou que o legislative power of investigation se acha sujeito a específicas garantias individuais arroladas no Bill of Rights, na cláusula vedatória da compulsory
self-incrimination (auto-incriminação compulsória).
Em nível doméstico, perfilhando a mesma tradição o Supremo Tribunal Federal, com a firmeza habitual, tem-se manifestado pela inviolabilidade do direito do depoente de silenciar naquilo que poderia indiciá-lo ou auto-incriminá-lo.
No entanto, a garantia constitucional em testilha não assegura que a testemunha deixe de comparecer à audiência de inquirição, uma vez que o direito de silêncio deve ser apreciado e avaliado por ocasião de cada pergunta formulada, que ficará
sujeito a controle judicial a posteriori
Com efeito, à mesma regra sujeitam-se os indivíduos que, por dever legal, têm a obrigação de zelar pelo sigilo de dados profissionais (advogados etc.).
O dever de comparecimento e de falar a verdade da testemunha é obrigatório, passível de responsabilização criminal em caso de descumprimento (art. 4º, inciso II, da Lei 1.579/52), pois a convocação não é um convite. Aliás, não fora assim
e o amplo poder de investigação parlamentar ficaria subordinado à anuência do convocado.
No campo, ainda, das recusas justificadas, encontra-se o direito do convocado de não responder a perguntas que não tenham correlação direta ou indireta com o fato determinado investigado. Essa questão surgiu em Watkins v. United States, tendo
decido a Corte que os depoentes somente têm o dever de responder a perguntas que guardem pertinência com os fatos determinados indicados no requerimento que autorizou a investigação e que, como garantia do devido processo legal, a comissão parlamentar
tem a obrigação de esclarecer a testemunha sobre aquilo que está sendo investigado.
Cabe-nos acrescentar que igualmente deve ser havida por legítima a recusa no comparecimento e no oferecimento de respostas naquelas hipóteses em que a investigação seja considerada inconstitucional, como, por exemplo, nas diversas situações
por nós retratadas neste trabalho.
No contexto da aplicação do due process of law à investigação parlamentar, urge dizer que, pelas características inquisitoriais que pode assumir o inquérito legislativo, ao convocado deve-se permitir a assistência permanente de um advogado,
bem como, além de outros direitos, o de resposta (arts. 5º, inciso LV, da CF/88 e 6º da Lei nº 1.579/52).
Essas são, portanto, em linhas gerais, as orientações que vêm sendo dadas ao tema pela jurisprudência das cortes constitucionais norte-americana e brasileira, as quais, esperamos, sirvam como contributo para uma análise mais detida das relevantes
questões relativas à abertura e condução de uma comissão parlamentar de inquérito.