Vicente de Paula Maciel Jr.
de um juiz, o acórdão de um tribunal, podem interferir na vida das pessoas de forma trágica, impondo uma vontade não desejada e executando essa decisão em nome do Estado. Mas o juiz somente atua, e é necessário que o faça, porque as partes envolvidas
em uma situação de conflito não foram capazes de solucionar por si próprias as suas querelas, ou porque determinados interesses das partes também interessam ao Estado e exigem uma tutela do órgão do Judiciário, como, por exemplo, os inventários e
as curatelas.
Mas o juiz não decide segundo suas vontades particulares ou fundamentado em simpatias ou antipatias pessoais. Há um critério geral ao qual o juiz se vincula inexoravelmente, que é a lei. O juiz é um prisioneiro da lei e do
sistema jurídico ao qual pertence, que vigora para todos, inclusive para ele próprio. E a lei define um modelo de atuação para o juiz, do qual ele não pode fugir, sob pena de ferir direitos das partes em conflito.
O juiz não é um funcionário
comum. É um agente político e junto com o Executivo e o Legislativo compõe a tríade dos poderes estatais. O juiz incorpora o poder jurisdicional e o aplica nos casos que lhe são afetos na sua esfera de atuação. O Judiciário não se submete a qualquer
dos demais poderes. O Legislativo faz as leis, o Executivo implementa as políticas estatais e o Judiciário tem a incumbência de aplicar as leis aos casos concretos, inclusive contra o próprio Estado, se necessário.
Do juiz é exigido um concurso
público severíssimo, do qual poucos são os aprovados. Normalmente os concursos para ingresso na Magistratura demandam cerca de seis meses, diversas etapas (mais ou menos seis), onde se impõe uma grande demonstração de competência técnica e preparo
emocional para o cargo. Também se lhe exigem a imparcialidade o bom senso, uma vida sem qualquer antecedente criminal, uma conduta pública e privada compatível com o cargo, que não exerça outra função ou cargo público, a não ser um cargo de professor,
que pode ser acumulado.
Em compensação, para que o juiz consiga suportar toda a carga de atribuições que lhe são impostas, a doutrina jurídica e a prática dos estados fizeram surgir a idéia nos povos civilizados de que era necessário conferir
ao juiz ‘‘garantias’’ nas Constituições. E assim foi feito e as diversas constituições dos povos civilizados (inclusive a brasileira) instituíram as garantias da vitaliciedade, que significa que o juiz, após um período de prova de sua aptidão para
o cargo, adquire o direito de não perder esse cargo, a não ser por processo judicial. Foi reconhecida a necessidade de garantir ao juiz a inamovibilidade, que é a impossibilidade de se retirar o juiz de sua comarca para atender a interesses escusos,
a não ser que o juiz decida sair por moto próprio. Ao juiz também se assegurou a irredutibilidade de vencimentos, para que não perca o poder aquisitivo e fique à mercê da tentação da corrupção, além de assegurar uma existência digna e compatível com
o cargo que ocupa. Além desses existem outros, como a identidade física do juiz, todos no intuito de garantir a independência do juiz em sua atuação.
Tenho assistido, estarrecido, ao verdadeiro achincalhe do Judiciário, como se fôssemos, todos
nós, representantes mais espúrios de paradigmas de privilégios instituídos.
Aliás, essa palavra, privilegio, tem sido o símbolo do ataque ao Judiciário, confundida e usada como se fosse garantia, o que não é verdade.
O privilegio é
uma situação vantajosa e especial posta em benefício de poucos e com a exclusão dos demais. A garantia encerra em seu sentido uma noção de responsabilidade, e é, como esclarecido, uma necessidade imposta constitucionalmente para o exercício do poder
jurisdicional.
Olho para os lados e vejo meus colegas de trabalho, todos assoberbados, isolados no confinamento da lei e da necessidade de imparcialidade que lhes são impostos, pressionados pelos interesses em conflito, bajulados com elogios
para que atendam com maior presteza a um ou outro em seus interesses egoísticos e muitas vezes distanciados da lei e da justiça. Ligo para meus colegas e não os encontro livres nos fins de semana. Estão todos sentenciando, solucionando a crescente
demanda de conflitos, sem sequer poderem conviver com a família.
Mesmo assim, vejo pessoas que não se entregam ao desânimo, que estão sempre preocupadas em atender da melhor forma que podem aos seus afazeres profissionais e, dentro do círculo
que conheço, não se corrompem.
Essas pessoas, que vivem pressionadas entre as relevantes atribuições que lhes são impostas e as antipatias estéricas dos derrotados judicialmente, estão com o pescoço na guilhotina. Viraram a ‘‘bola da vez’’…
Sem a mínima condição de defesa, esclarecimento, discussões sérias e refletidas como a gravidade do tema merece, temos sido execrados publicamente e de forma unânime por jornalistas mal informados e que não cumprem o papel da imprensa de divulgar
todos os lados das questões nacionais; congressistas incompetentes e que somente enxergam o próprio umbigo, aparecendo para as câmaras numa catarse politiqueira e eleitoral; e um Executivo subserviente ao capital, dono da verdade, a quem mais interessa
o enfraquecimento do Judiciário.
Gostaria de lembrar que as garantias constitucionais da magistratura já foram suprimidas no Brasil, sendo que na história mais recente temos os Atos Institucionais nº 1 e 2 e os que se seguiram, quando o juiz
podia ser sumariamente afastado se não atendesse aos interesses da Revolução.
Hoje essas garantias estão sendo atacadas de forma mais sutil e refinada e não atendem mais aos interesses da Revolução, mas aos interesses do capital, do dinheiro,
que não têm ideologia nem partido, mas apenas se interessam em afastar da frente aqueles que os impedem de crescer.
Será votada brevemente a reforma da previdência, em que pretendem extirpar a aposentadoria integral dos magistrados. Isso significa,
na prática, a quebra da garantia de irredutibilidade de vencimentos. O juiz, que recolhe previdência sobre a integralidade de seus vencimentos e não sobre um limite máximo de salários, terá a aposentadoria limitada, embora tenha contribuído (sem sonegação)
por um teto acima do limite pago pela previdência comum. Ou seja, o juiz paga por uma aposentadoria integral, tendo desconto que considera a totalidade de seus vencimentos e receberá por critérios diferenciados relativos aos empregados das empresas
privadas, que somente recolhem até um teto preestabelecido por lei. Surge aqui uma questão nunca levantada na imprensa, que é o fato de que todo juiz terá direito de pleitear a diferença entre os valores que recolheu a maior e o teto inferior ao qual
se submeterá. Essa é apenas uma das questões técnicas.
O mais importante não é isso, mas sim o fato de que essa garantia constitucional estará sendo quebrada, o que é o primeiro passo para o enfraquecimento do Judiciário. Hoje, uma das únicas
vantagens da carreira de juiz é a aposentadoria integral, pois os vencimentos estão muito ruins. Um juiz substituto ganha em início de carreira R$ 3.700,00 (líquidos). Se ele aluga um apartamento em qualquer cidade brasileira, se tem filhos e compra
livros para se atualizar ou mantém atualizado um computador, não poderá fazer mais nada, a não ser o que lhe resta: julgar.
Um assessor jurídico de qualquer empresa privada, que tenha a qualificação de um juiz, ganha no mercado muito mais
que um juiz.
A quebra da aposentadoria integral significa, na prática, que o Judiciário irá se enfraquecer, pois perderá uma das únicas vantagens que lhe restam. Ser juiz não será atrativo para ninguém que tenha qualidade técnica de se adaptar
ao mercado, e aqueles que estão a caminho de se aposentarem ou procurarão outra atividade ou se agarrarão ao cargo até a chegada da aposentadoria compulsória, com poucas possibilidades de renovação dos quadros.
Ou se paga bem o juiz durante
a sua vida funcional para que ele tenha condições de enfrentar a velhice, como ocorre em diversos países do mundo, ou se lhe garante a integralidade dos vencimentos na aposentadoria. O que não pode é haver um Judiciário sem qualquer tipo de garantia
de vencimentos e sujeito às mais execráveis chantagens do dinheiro.
Acompanhei com alegria algumas poucas manifestações em favor da manutenção da garantia da irredutibilidade de vencimentos e que não foram defendidas por magistrados, mas pelo
brilhante advogado Saulo Ramos, pelo ex-senador Murilo Badaró e pelo consultor dos Diários Associados, Hindemburgo Pereira Diniz.
Particularmente, tenho apenas a intenção de externar a opinião de grande parte da magistratura, que não tem sido
ouvida e que nunca pretendeu passar o povo brasileiro para trás, aquinhoando verbas do erário público. Queremos simplesmente defender nossa dependência e nossa tranqüilidade para julgar, a única garantia que ainda temos nesses tempos de Plano Real
e de estupro constitucional e da qual nunca abriremos mão.