Vicente de Paulo Saraiva
Há quem pense que as expressões latinas usadas nos livros jurídicos e nas petições em juízo não passam de velharias ou de mera exibição de falsa cultura ou de cultura inútil. No entanto, se os mais cultos juristas vêm persistindo, até os dias de hoje,
em sua já antiqüíssima utilização, é que tais expressões, não poucas alçadas em aforismos, têm condenadas admiravelmente, em si mesmas, os institutos jurídicos mais fundamentais, afora os princípios gerais do Direito. E, como observou o saudoso professor
San Tiago Dantas, nenhum povo, em época alguma, construiu seu sistema de direito positivo sem buscar no direito romano o paradigma dessas suas construções.
A supressão do Latim na reforma das diretrizes e bases de nossa educação vem induzindo os menos cautos a transcreverem textos vazados nessa língua sem entender nem o quê nem o porquê nem o como do que estão dizendo. E aí acontecem gralhas
imperdoáveis. Não raro se vê escrito inaudita altera pars (em vez de parte) (= sem que seja ouvida a outra parte), em razão de uma falsa analogia com audiatur altera pars (= seja ouvida a outra parte), muito embora se trate de construções sintáticas
absolutamente diversas. Às vezes, deparamo-nos com a quo … ad quam (em vez de ad quem) (= do qual… para o qual), como se os pronomes relativos se referissem à decisão judicial ou à sua prolatora — quando na realidade o termo subentendido é judex
(= juiz), que deve ser considerado um substantivo sobrecomum, significando o órgão judiciário e não a pessoa (homem ou mulher) do julgador. Por vezes, ainda, tem-se usado indiscirminadamente actio locati por actio conducti e vice-versa; embora ambas
tenham a mesma tradução de ‘‘ação de locação’’, suas finalidades são opostas: pois a primeira é a ação do locador contra o locatário, enquanto a segunda é o inverso. E assim por diante, podendo-se arrolar os mais variados equívocos.
É verdade
existirem locuções, versadas para o Latim, mas de outra origem, qual o habeas corpus; entretanto, poucos sabem remontar ao direito romano o interdito de homine libero exhibendo (= sobre a obrigação de ser levado (à presença do magistrado) o homem
livre), provisão pretoriana destinada a defender a liberdade das pessoas. Tal é a influência e o vigor do linguajar latino, que se vê sempre criando locuções novas, como in vitro e in vivo, que exprimem as mais modernas experiências laboratoriais
ou técnico-científicas: a primeira, exemplificando-se com a fecundação artificial de óvulos nos animais ou nos seres humanos: e a segunda, o extraordinário poder criativo da clonagem — ambas aferindo inúmeros problemas de natureza tanto ética ou religiosa
quanto jurídica.
Nem se podem esquecer provérbios de extremo interesse prático e de imprevisível origem. Cite-se, ao acaso, o porquê de ad Kalendas graecas (= para os Calendas gregas). Esclarece o historiador Suetônio (cerca de 70-128 d. C.),
em sua célebre ‘‘Vida dos Doze Césares’’, que o imperador Augusto usava em suas conversas do dia-a-dia expressos curiosas, como a aludida acima, para significar que certas dívidas somente seriam pagas ‘‘no dia de São Nunca’’ — como dizemos nós. Isso
porque os gregos não tinham Calendas, dividindo os meses em três décadas, ao passo que os romanos os dividiam em três datas díspares: as Calendas (o dia 1º), as Nonas (dias 5 ou 7) e os Idos (dias 13 ou 15). Ora, os dias eram contados de trás para
diante (entre uma dessas datas e a seguinte), computando-se, porém, o termo inicial e o final. E aí reside o surgimento (de muito poucos conhecido) da palavra ‘‘bissexto’’. ;E que os romanos não admitiam como data o dia 29 de fevereiro, este reduzido
sempre a vinte e oito dias, mas com reajuste de quatro em quatro anos, tendo sido escolhido o dia 24 para tal reajuste. Então, nos anos comuns, para 24 de fevereiro eles diziam: ‘‘antes do dia sexto das Calendas de março’’ (24, 25, 26, 27 e 28/02
+ 1º/3); e, de quatro em quatro anos: ‘‘antes do dia sexto pela 2ªvez (= bis) das Calendas de março’’, ou seja, traduzindo para o Latim; ante diem bis sextum Kalendas Martias.
Foi por isso que resolvi depositar na mão de meus eventuais leitores
o que me foi sendo ensinado desde os tempos de criança, no livro ‘‘Expressões Latinas Jurídicas e Forenses’’ (Ed. Saraiva, 1999, 856 págs. — com 543 verbetes, precedidos de uma minigramática latina). Nessa obra, não traduzo, apenas, as expressões
latinas: explico morfo e sintaticamente qual a construção usada, por palavra, e por quê; dou a raiz etimológica dos termos, como p. ex. o da palavra ‘‘autor’’ (provinda do verbo agere = agir física ou intelectualmente); mostro a evolução semântica
daqueles, ou seja, como é que se chegou, p. ex., ao atual sentido de dies nefasti (= dias nefastos/maléficos), porque originariamente o rei era também pontífice e juiz; ora, em certos dias não lhe era lícito sequer falar (= ne + fari), por estar em
adoração aos deuses. Esclareço, ainda, como eram concebidas originariamente essas expressões no Direito Romano (ou no país donde provieram), e a que ponto se foram modificando seus conceitos até aos de nossos dias, na lição dos mais autorizados catedráticos
e especialistas do ramo. E desenvolvo, enfim, as chamadas braquilogias (termo(s) mais significativo(s) extraído(s) de um contexto maior — como a priori, de cujus, quorum…), a fim de torná-las inteligíveis.
Mas não me restringi apenas aos
virtuosos da cultura. Pensei também, de um modo particular, nos afadigados advogados militantes e nos acadêmicos de Direito. Criei, por isso, um Índice Analítico todo especial, onde cada título do assunto remete nomeadamente aos vários verbetes a
respeito (e suas respectivas numerações), para que o consulente escolha os de seu interesse no momento. Ofereço-lhe então a síntese completa, objetiva e clara da matéria, fundamentada nos mais autorizados juristas pátrios ou estrangeiros, bem como
na jurisprudência das cortes superiores (quando o exigiam certos casos), evitando o que seria uma cansativa pesquisa, que resolvi antecipar em proveito do interessado.