Cláudio Luiz dos Santos
O projeto de emenda à Constituição Federal nº 96, cujo relator é o deputado Jairo Carneiro, propõe algumas modificações na estrutura e funcionamento do Poder Judiciário, entre as quais destaca-se o caráter vinculante ao Judiciário e à Administração Pública,
de decisões reiteradas e uniformes do STF, em matéria tributária e administrativa. Logo se instalou a polêmica quanto a essa inovação, sustentando defensores e opositores argumentos sólidos e respeitáveis, porém inconciliáveis. No entanto, está-se
colocando carroça na frente dos bois e isso porque a existência ou não da chamada súmula vinculante pressupõe o debate em torno da composição do STF.
É sabido que decisões de grande impacto e abrangência proferidas pelo STF sofrem injunções políticas, mormente do Executivo Federal que acarretam a infidelidade de algumas delas à Constituição, não obstante a missão institucional de guardião
da Carta Magna conferida ao STF. À guisa de ilustração veja-se a decisão recente do STF que proibiu a concessão da tutela antecipada contra a Fazenda Pública, quando o pedido formulado em juízo versar sobre reclassificação, equiparação, concessão
de aumento e extensão de vantagens aos servidores públicos, tendo como pressuposto a constitucionalidade do art. 1º da Lei nº 9.494/97. O STF determinou ainda a suspensão dos efeitos das tutelas já concedidas até o julgamento definitivo.
A decisão cautelar foi dada em ação declaratória de constitucionalidade (nº 4) promovida pelo presidente da República e pelas Mesas do Senado e da Câmara Federal, e impõe expressamente a vinculação dos órgãos do Judiciário, ou seja, os juízes
deverão seguir a determinação do STF, sob pena de responsabilidade funcional, conforme a Lei Orgânica da Magistratura. A aberração ou teratologia da decisão, como quiserem, desdobra-se em dois aspectos: primeiro, a Constituição não prevê medida cautelar
em ação declaratória de constitucionalidade, como o faz categoricamente com a ação direta de inconstitucionalidade (art. 102, I, alínea ‘‘p’’); segundo, a Constituição prevê efeitos vinculantes e eficácia contra todos apenas das decisões definitivas
de mérito em declaratória de constitucionalidade (art. 102, par. 2º). Significa dizer que não poderia o STF ter concedido a medida cautelar e tampouco atribuir efeito vinculante à sua decisão provisória, sem que houvesse o devido processo legal coroado
pelo pronunciamento definitivo de mérito.
Todavia, a decisão do STF responde às exigências do Executivo Federal de controle e postergação dos gastos públicos, especialmente quando envolvem demandas salariais do funcionalismo, tratadas pelo governo com soberba indiferença em nome
de um novo paradigma da Administração Pública consubstanciado no Estado Mínimo. O conteúdo da decisão é, sem dúvida, resultado do processo de escolha dos ministros do STF, nomeados pelo presidente da República após aprovação pelo Senado (art. 102,
par. único, da CF/88). Esse modelo, que não é objeto de modificação pelo projeto de emenda referido no início e que reproduz a fórmula adotada para a designação dos juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos, próprio de um contexto histórico-político
que não é o nosso, reforça a prevalência do Executivo sobre os demais poderes e precisa urgentemente ser repensado, no sentido de eliminar a exclusividade ou centralismo da nomeação, nem sempre caracterizada pelo acerto quanto à cultura jurídica,
à reputação, ao pensamento e conduta independentes do indicado. O fortalecimento, a autonomia e a credibilidade do Judiciário, imprescindíveis ao Estado Democrático de Direito, estão à mercê desse modelo.
Jânio de Freiras já alertou para a questão em artigo publicado na Folha de S. Paulo (edição de 11.5.97) ao observar que ‘‘caso se pretenda um Judiciário que sempre faça justiça e jamais política ou equívocos, os ministros do STF e de todos
os tribunais superiores precisam ser escolhidos por métodos objetivos de avaliação e, se for o caso, de consagração. Do contrário, a cidadania não tem por que superar as suas reservas em relação ao alto Judiciário. Quase todas as causas que chegam
ao Supremo tocam interesses do governo, sejam políticos ou administrativos. Como agirá um ministro nomeado pelo presidente da República empenhado em determinada decisão: dispõe-se a votar contrariamente a quem lhe deu a nomeação ambicionada ou sacrifica,
embora guardando-se de evidenciá-lo, a prevalência da lei sobre tudo o mais?’’
Indo mais longe, a história política brasileira é marcada por longos períodos de exceção, autoritarismo e democracia formal e aparente, dos quais surgiram normas infraconstitucionais que concedem uma série de privilégios ao Estado, no âmbito
da relação processual, e constituem um dos motivos da demora da efetiva prestação jurisdicional, acarretando o descrédito do Judiciário, porque justiça lenta não realiza a justiça a tempo, na acertada convicção de Rui Barbosa. Entre outros, prazos
dilatados para a defesa, inclusive, para a propositura de ação rescisória, inexistência de confissão ficta, duplo grau de jurisdição, impenhorabilidade dos bens públicos, qualidade preferencial do crédito fazendário em cotejo ao do particular, salvo
o crédito trabalhista, proibição da tutela antecipada já referida. Tais dispositivos atentam claramente contra os preceitos constitucionais da isonomia das partes e da livre apreciação pelo Judiciário de lesão de direito e, quiçá, poderiam ser objeto
de declaração de inconstitucionalidade concentrada se menos exclusivista fosse o processo de escolha dos ministros do STF.
Sujeito que está aos desígnios do príncipe, o modelo atual de composição do STF obstaculiza a consolidação da cidadania em favor do agigantamento do Estato-Leviatã, com perdão da redundância, que, no caso brasileiro, responde pelo nome de
Executivo, sem freios e contrapesos.