Miguel Roberto Silva
Uma norma legal justifica-se quando atende ao interesse público, sobretudo se é restritiva de direitos para uma classe, categoria profissional ou grupo social. Caso contrário fere-se a razoabilidade e o princípio isonômico, inserido no ‘‘caput’’ do art.
5º da CFB vigente, que só alberga tratamento legal diferenciado aos indivíduos na medida de suas desigualdades.
Esses princípios aplicam-se sobretudo no campo profissional, tão árduo e competitivo, sendo reforçados por outra garantia constitucional,
no inciso XIII do mesmo art. 5º, in verbis: ‘‘É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer.’’ A lei deve ter seu fundamento de validade na Constituição e ser legítima
não apenas no aspecto formal (regular processo legislativo), como no campo material (conteúdo) e no plano ético (moral). Com tais premissas, propomo-nos a criticar a restrição imposta aos militares da ativa pelo art. 28, inciso VI, da Lei nº 8.906/94,
Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil — OAB, que cria a incompatibilidade (vedação absoluta) dos militares em atividade para todas as ações advocatícias, tais como postulação, consultoria, assessoria e direção jurídicas. Eis que
o legislador alijou os militares da ativa, bacharéis em Direito, de exercer qualquer função jurídica.
Especificamente nesse ponto, questionamos a validade da lei quanto à ética, à coerência de seu conteúdo e à constitucionalidade. Por que
proibir a inscrição na Ordem e o exercício da advocacia ao militar da ativa graduado em Direito? Para alguns a vedação reflete o temor da possibilidade de tráfico de influência pelo militar advogado que poderia intimidar a parte adversa ou peitar
o juiz. O argumento é anacrônico, já que o país consolidou a democracia e há muito tem sido governado pelo poder civil. Hoje, os militares pagam impostos e exercem seus direitos e obrigações como qualquer outro integrante da dita ‘‘sociedade civil’’.
Essa tese vislumbra uma situação institucional e política já superada ou, então, mal disfarça um revanchismo corporativista contra a classe castrense. Do contrário, como explicar que a mesma Lei nº8.906/94, que incompatibiliza os fardados, vem autorizando,
no seu art. 30, inciso II, que membros do Poder Legislativo exerçam a advocacia, na condição de meros impedidos?
E quem hoje, por hipótese, tem mais condições de traficar influência: um parlamentar ou um oficial das Forças Armadas? Onde está
a ética e a coerência interna do texto estatutário, imprescindíveis à sua legitimidade? Outros dizem que sendo a carreira militar devotada às finalidades precípuas das Forças Armadas não há interesse das autoridades militares em consentir que seus
subordinados tenham licença para desempenhar funções estranhas à natureza bélica. Essa idéia é falsa, pois o Estatuto dos Militares, Lei nº 6.880, de 9 de dezembro de 1980, prevê no seu art. 29, § 3º, que ‘‘no intuito de desenvolver a prática profissional,
é permitido aos oficiais titulados dos Quadros ou Serviços de Saúde e de Veterinária o exercício de atividade técnico-profissional no meio civil, desde que sua prática não prejudique o serviço…’’
O aprimoramento profissional dos militares em funções não essenciais ao emprego bélico, mas de interesse para as Forças Armadas, não só é permitido, como incentivado. Assim, médicos, dentistas e veterinários — militares da ativa — não têm
quaisquer restrições ao registro profissional e exercem, legalmente, suas atividades no âmbito militar e no meio civil.
Na área de engenharia militar, o IME (do Exército) e o ITA (da Aeronáutica) foram criados e mantidos para formar profissionais
atuantes nas áreas logísticas de interesse das Forças Armadas, sendo que esses militares, mesmo na atividade, inscrevem-se nos CREAs e exercem livremente a profissão, nos termos da Lei nº 5.194, de 24 de dezembro de 1966, tanto a serviço da respectiva
Força, quanto em atividades privadas.
Igualmente, os militares da ativa formados em Administração são admitidos a registro nos CRAs, sem quaisquer restrições, conforme Lei nº 4.769, de 9 de setembro de 1965, com suas modificações. Quanto aos
profissionais do Direito, o Exército e a Aeronáutica já criaram, por meio de portarias ministeriais, quadros de oficiais da área jurídica, convocando para o serviço ativo — por meio de concurso público — bacharéis e/ou advogados para atuarem em suas
organizações militares. Vários profissionais dessa área têm ingressado nas Forças Armadas, na qualidade de oficiais da ativa, só que quando nomeados tornaram-se incompatíveis com as atividades jurídicas, perdendo o direito de exercer a profissão em
benefício da própria instituição que os admitiu.
Não assinam — na qualidade de advogados — as assessorias e os documentos que produzem e tampouco têm acesso, nos tribunais, a processos e atos judiciais de interesse de sua organização militar. Percebe-se que, nesses casos, a vedação da Lei
nº 8.906/94 traz prejuízo institucional e pessoal, mas qual o interesse público que o Estatuto da Ordem visa resguardar com tal restrição aos militares? Questiono, ainda, a constitucionalidade do inciso VI, do art. 28, da Lei nº 8.906/94, pois o dispositivo
cria restrição infundada ao direito dos militares da ativa, afrontando a Carta Magna que em seu art. 5º, inciso XIII, garante que ‘‘é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer’’.
É razoável exibir o bacharelado em Direito e o exame (teórico e prático) da Ordem para comprovar-se a qualificação profissional necessária ao exercício da advocacia, mas é incompreensível que um cidadão, apenas por ser militar da ativa, seja incompatibilizado
com as atividades jurídicas.
A restrição também afronta o princípio isonômico do ‘‘caput’’ do art. 5º da Constituição Federal, eis que, para o fim específico da advocacia, os militares não estão em condições diferentes dos servidores públicos
civis (Lei nº 8.906/94, art. 30, inciso I), os quais são apenas impedidos (restrição parcial).
O Estatuto da Ordem criou para os militares da ativa proibição desarrazoada ao livre exercício profissional da advocacia, resvalando na ética, pecando
na coerência e afrontando direitos e garantias constitucionais aplicáveis a todos, sejam civis ou fardados.
A questão de fundo é de ordem política, no âmbito interno da própria OAB. Mas, cremos que, havendo boa vontade,e há meios para modificar
a Lei nº 8.906/94, revogando essa restrição infundada.
‘‘Data venia’’, apresentamos algumas sugestões para alterar o referido texto legal. Outras hão de surgir se a questão for debatida, repita-se, com boa vontade.
A primeira é a reclassificação
dos militares da ativa, que passariam de incompatíveis a impedidos, como de resto acontece com os servidores civis e os membros do Poder Legislativo.
Por outro lado, a restrição legal pode colimar a natureza da atividade desenvolvida pelo advogado inscrito e não apenas os sujeitos da lide, como ora ocorre. Explica-se. O militar da ativa inscrito na Ordem poderia ter, em sua carteira funcional,
credenciais para exercer determinadas atividades, como assessoria e consultoria, por exemplo, sendo, eventualmente, proibido de postular em juízo ou de ocupar direção jurídica. Esses advogados, ao atuarem exibiriam suas credenciais ao serventuário
ou a quem de direito, para comprovar a ausência de restrições à atividade profissional.
A flexibilização da Lei nº 8.906/94 seria proveitosa a todos. A OAB recolheria mais contribuições para viabilizar suas ações de munus público. Os militares
da ativa poderiam, enfim, credenciar-se perante a Ordem, garantindo a antiguidade de inscrição e ampliando seu desenvolvimento profissional e humanístico, mormente em benefício da instituição a que estejam vinculados.