Izabela Frota Melo
Diz a Lei nº 7.347/85, que instituiu entre nós a ação civil pública, que ‘‘a sentença civil fará coisa julgada erga omnes’’. É pois característica e qualidade da sentença desta especialíssima ação civil a produção de efeitos contra todos, típico de um
processo objetivo, caráter que igualmente não lhe pode ser negado, mormente quando o postulante atua na defesa de um interesse público.
A problemática surge quando, nesses tipos de ações, veicula-se pretensão envolvendo questionamento
prévio acerca da constitucionalidade de lei ou ato normativo, o que se vem observando na prática forense, principalmente em matéria tributária.
É que a ação civil pública não pode ser utilizada como sucedâneo da ação direta da inconstitucionalidade.
A matéria tem gerado polêmica, uma vez que a decisão, na ação civil pública, que necessariamente terá eficácia transcedente às partes formais, ‘‘acabaria por instaurar um controle direto e abstrato no plano da jurisdição de primeiro grau’’ (in ‘‘Direitos
Fundamentais e Controle de Constitucionalidade’’, Gilmar Ferreira Mendes, Celso Bastos Editor, 1998), subvertendo todo o sistema de controle de constitucionalidade adotado no Brasil.
Em decisão publicada no Diário da Justiça de 21 de setembro
de 1998, da relatoria do eminente ministro Gomes de Barros, restou assentado que: ‘‘I — O Ministério Público está legitimado para o exercício da ação civil pública, no objetivo de proibir a cobrança de taxa ilegal. II — É viável, em processo de ação
civil pública, a declaração incidente de inconstitucionalidade. ‘‘(RESP nº 129.409/MG, pág. 57).
Mais recentemente, colhe-se da jurisprudência o seguinte aresto: ’’PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL. PÚBLICA EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA. A ação civil pública
não pode ser utilizada para evitar o pagamento de tributos, porque, nesse caso, funcionaria como verdadeira ação direta de inconstitucionalidade; ademais, o beneficiário não seria o consumidor, e sim o contribuinte — categorias afins, mas distintas.’’
(RESP nº 150.003-MG, Rel. Min. Ari Pargendler, DJ 08.03.99, pág. 193).
A questão agrava-se na medida em que a matéria, amplamente controvertida, recebe tratamentos os mais diversificados no primeiro grau de jurisdição. A polêmica reforma implementada
pelo governo federal, que culminou com o aumento da alíquota previdenciária para os servidores públicos ativos e a instituição desta para os inativos, teve sua constitucionalidade questionada em sede de ação civil pública (nº 99.7811-2), cuja liminar
restou deferida pelo ilustre juiz substituto em exercício na 9ªVara Federal, com eficácia erga omnes, nos limites da jurisdição do órgão prolator (Lei nº 9.494/97).
Abriu-se possibilidade para instalação do caos. Nos dizeres de Arnoldo Wald,
‘‘admitida ação civil pública para obstar a cobrança de tributo havido por inconstitucional, abre-se a possibilidade de prolação de sentenças contraditórias, como efeitos igualmente erga omnes, o que resulta absurdo.’’
Por fim, vale salientar
que o Supremo Tribunal já se manifestou no sentido de descabimento da ação civil pública como instrumento de controle da constitucionalidade, por entender haver no caso usurpação da sua competência que restritamente lhe foi conferida pela Constituição
Federal (Reclamações 434-1-SP, 557-7-MG, dentre outras).
É, portanto, inadmissível a utilização da ação civil pública quando cabível a ação direta de inconstitucionalidade, não havendo que se respaldar nóveis argumentos que buscam legitimar
tal abuso (e não uso) na amplitude do objeto daquela ação, que poderia compreender uma condenação ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer.
Em suma, seja pela especialidade que caracteriza a ação civil pública, seja pelo modelo
de controle de constitucionalidade adotado no país, não há base jurídica que fundamente a utilização desse instituto para questionamento de constitucionalidade de lei.
Vale ressaltar que não se está com isso afirmando a constitucionalidade
da Lei nº 9.783/99. O que se está afirmando é a impossibilidade de impugnação de sobredito diploma legal por meio da via eleita pelo Ministério Público Federal. Se o ordenamento jurídico pátrio prevê meios hábeis e adequados à persecução do que é
jurídico, trilhemos os caminhos postos à disposição dos jurisdicionados, para que não nos valhamos do mesmo expediente utilizado pelo governo federal, que, de maneira oblíqua e em patente afronta ao texto magno, tenta transferir ao povo os encargos
resultantes da sua política econômico-financeira.