Marcelo Pimentel
Para cobrir o rombo da Previdência Social confisca-se parte das aposentarias dos inativos, inclusive e principalmente aquelas pagas pelo Tesouro. Confisca-se, não. Pretende-se confiscar, porque, na realidade, a Justiça será acionada, em milhares de ações,
para que se restabeleça o princípio constitucional do direito adquirido.
Como acentuei em artigo anterior, a lei do confisco (9.783, de 28.1.1999) sobre os inativos agrediu inicialmente o artigo 195 da Constituição, eis que a manutenção da Previdência Social se dá pela contribuição da União, estados, municípios,
a sociedade e os interessados. Agora se pretende que o inativo, que não é beneficiário nem da Previdência e nem tem qualquer possibilidade de melhoria na sua aposentadoria pelo Tesouro, vá pagar para cobrir o rombo que a inépcia administrativa abriu
nos orçamentos do sistema.
Torna-se evidente a inconveniência de discutir no Supremo Tribunal Federal, desde já, a constitucionalidade ou não da lei. Já na votação no Congresso, tivemos alguns ilustres deputados votando pela sua aprovação tementes da repercussão negativa
que a rejeição, nesta altura, poderia ter nas negociações que estavam sendo feitas com o FMI. Ora, o clima, no momento, não é de se provocar um pronunciamento de última instância sobre a questão de sua constitucionalidade ou não. Tive a oportunidade
de manifestar esse ponto de vista ao ilustre presidente da OAB, dr. Reginaldo Castro, pugnando pela busca de decisão favorável em instância mais baixa.
Não acho prudente lançar-se sobre o Supremo a obrigação de, desde já, dirimir a questão. Lembro-me dos lordes ingleses, no caso Pinochet. A pressão da opinião pública, lá como cá, dificulta a solução legal. Aqui, seria a pressão dita institucional,
leia-se FMI.
Que saudades do Juscelino que teve a coragem de romper com o FMI, expulsando-o daqui, em ato público. Na vida, o importante é a satisfação do dever cumprido, como assinalou Rui Barbosa. Na minha longa vida de magistrado, quantas vezes defendi
teses aparentemente derrotadas e que, afinal, se tornaram vitoriosas. Não creio que haja juiz nesta terra que possa entender como jurídica, revestida de qualquer respingo de constitucionalidade, a Lei nº 9.783, porque ela agride pelo menos dez artigos
da Constituição. Nunca vi, nos meus cinqüenta anos de advogado, lei mais inconstitucional!
Creio que a primeira das violações não e só ao artigo 195 da Constituição, como assinalei anteriormente, e, sim, a inconstitucionalidade decorrente da repetição da proposta, na mesma sessão legislativa, e mais do que isso, repetindo o que
se continha em Medida Provisória rejeitada.
Em primeiro lugar, já tendo a iniciativa sido derrotada por quatro vezes, o Congresso não poderia ser pressionado a engolir a pílula indigesta, como afinal acabou acontecendo, em evidente agressão a todos os princípios da ética em política
e em desrespeito à independência dos Poderes da República, porque toda sorte de pressões foi jogada sobre o Legislativo.
Mas, entendo igualmente que a Medida Provisória não poderia ter sido repetida porque fora rejeitada anteriormente. A equivalência entre a medida provisória e o projeto de lei, trazia a este a pecha de inconstitucionalidade.
Outrossim, parece-me de evidente inconstitucionalidade que a matéria tenha sido disciplinada mediante lei ordinária. Em se tratando de imposto, careceria de norma complementar com apoio no art. 146 da Constituição, que dispõe: o poder de
tributar é limitado. Daí por que a Constituição estabeleceu as limitações para esse exercício, aqui ultrapassada ilegalmente.
Claro que só lei complementar à Constituição poderia estabelecer o novo tributo. Nem aí aceito que alcançasse os aposentados, porque expressamente estão citados os trabalhadores e inativo já deixou de sê-lo.
Afirma-se que a Emenda Constitucional pode dispor sobre tudo, o que de certa forma é aceitável. Mas, o seria, por certo, se a alteração se fizesse também na cláusula pétrea dispondo sobre o direito adquirido que, não tendo sido modificada,
tem plena vigência, para resguardar o direito daqueles que o adquiriram por decisão definitiva, ato jurídico perfeito.
O parágrafo 4º do artigo 195 não deixa dúvidas sobre a necessidade de lei complementar, porque a União poderá instituir:
I — ‘‘mediante lei complementar, impostos não previstos no artigo anterior, desde que sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição’’;
Vê-se daí que a lei complementar, exigente de quorum qualificado, que o governo, apesar de toda a pressão não obteve, foi esquecido, como ultrapassada foi a regra da irretroatividade da lei, pois se estabeleceu regra nova para fatos constituídos anteriormente.
E aí é que vem a maior violência, porque se tripudiou sobre o artigo 5º da CF:
‘‘Artigo 5º — ……………………………………………..
XXXVI — a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;
XL — a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;
A lei também é altamente discriminatória. Fixa-se um teto de isenção para um grupo que ficará excluído das obrigações desde que, tendo implementado o direito à aposentadoria, permaneça em atividade até quando se afastar definitivamente. Fixa-se ainda
uma isenção para os que ganham menos de 600 reais. Discriminatória e ilegal, a lei fixa regras de tributação que só a lei complementar poderia fazê-lo.
Porém, se exigirá o pagamento de quem nada mais poderá receber de benefício, porque já aposentado, para que cubra o déficit previdenciário ou desonere o Tesouro. E tanto é convocado para isto, somente isto, porque se estabeleceu a obrigação
de pagar apenas por quatro anos. Afinal, é legal cobrar, mas apenas por quatro anos? Depois de quatro anos, todas as dificuldades terão desaparecido, junto com os atuais argumentos do governo para justificar a extorsão?
Como se vê, a lei nova violou os artigos 5º, 145, 146, 195 etc, aqui por nós já analisados.
O artigo 145 determina que sempre que possível o imposto terá caráter pessoal e será graduado segundo a capacidade econômica do contribuinte.
Foi evidente que o confisco é só para cobrir déficit, pouco se importando que represente, igualmente, redução salarial. E em que montante! Não se avaliou sequer a repercussão sobre o orçamento doméstico o vulto da cobrança.