Palhares Moreira Reis
A responsabilidade penal do servidor público decorre do fato de ter este praticado, no exercício de suas funções, uma ação considerada pela legislação penal — no sentido amplo, elencando todas as leis que definem crimes e cominam penas — como sendo um
crime, ou uma contravenção. Nesse sentido, a clara redação do art. 123 da Lei nº 8.112, de 1990, que dispõe sobre o chamado Regime Jurídico Único do servidor federal: ‘‘Art. 123. A responsabilidade penal abrange os crimes e contravenções imputadas
ao servidor nesta qualidade’’.
Toma dimensão especial quando o crime ou a contravenção venham a ser praticados contra a administração pública. Por administração pública deve se entender toda ação de Estado, realizada pelos órgãos de todos os poderes, e, no Poder Executivo,
pelos entes ditos da administração direta e por aqueles da administração indireta, com o objetivo do cumprimento das finalidades do Estado, em especial ‘‘o conjunto das funções exercidas pelos vários órgãos do Estado, em benefício do bem-estar e do
desenvolvimento da sociedade (1). No sentido estrito, consideram-se apenas aquelas ações típicas do chamado ‘‘poder administrador’’, que é o Poder Executivo. De modo amplo, no entanto, são considerados todos ‘‘os atos de governo, em qualquer das esferas
de poder, e se o grosso da administração encontramos na atividade do Poder Executivo, no Legislativo e no Judiciário também os achamos ante atos de natureza administrativa e, por conseqüência, da administração (2). Destarte, os atos ilícitos contra
a administração pública podem ser cometidos pelos servidores desta, ou por pessoas a ela estranhas. Ou, ainda, com a participação, em co-autoria, de uns e de outros.
Essas irregularidades, no âmbito estritamente administrativo, são apuradas pela via do processo disciplinar, no sentido amplo, através da sindicância e do inquérito administrativo.
No entanto, em havendo indícios de existência de crime ou contravenção contra a administração pública, além da verificação e da sanção administrativa, a apuração e a punição decorrem de um processo pela via judicial, podendo este ser instaurado
em paralelo à averiguação administrativa (3), ou em conseqüência do resultado do processo administrativo (4).
Como ensina o eminente Nélson Hungria, ‘‘a punição de certos ilícitos na esfera do direito administrativo, ao invés de o ser na órbita do direito penal comum, não obedece, como já frisamos, senão a razões de conveniência política: para o
direito penal comum é transportado apenas o ilícito administrativo de maior gravidade objetiva ou que afeta mais diretamente o interesse público, passando, assim, a ilícito penal. O ilícito administrativo de menor intensidade não reclama a severidade
da pena criminal, nem o vexatório strepitus judicii. É verdade que, em certos casos, o direito penal administrativo comina sanção contra fatos que são também punidos como ilícito de direito penal comum. É o que ocorre notadamente nos setor do direito
administrativo disciplinar, cotejado com o capítulo do direito penal comum sobre os crimes funcionais’’ (5).
Considere-se, ainda, que os crimes contra a administração pública em geral, por quem está a seu serviço, e aqueles contra o patrimônio ou a fé pública de ente público, embora cometidos no estrangeiro, ficam subordinados à lei brasileira (6).
Entende-se de prudência incluir, no presente estudo sobre processo administrativo disciplinar, algumas informações sobre questões relevantes de Direito Penal, especialmente a tipificação dos crimes contra a administração pública, para que
os servidores encarregados da realização do procedimento tenham à sua disposição tais elementos informativos, capazes de os instruir sobre o que é ou não é crime contra a administração pública (no sentido amplo), e quais as conseqüências para o servidor.
O Código Penal vigente, que é de 1940, elenca os diversos crimes possíveis de serem cometidos contra a administração pública, agrupando-os em três capítulos, a saber.
a) os crimes praticados por funcionários contra a administração;
b) os crimes praticados por particulares contra a administração e
c) os crimes praticados contra a administração da Justiça.
Não é o Código Penal a única Lei brasileira que cuida dos crimes contra a administração pública. Outros diplomas legais, como, por exemplo, a lei sobre os policiais federais (7), a Lei sobre a Repressão do Tráfico Ilícito de Entorpecentes
(8), a Lei que configura Infrações à Legislação Sanitária Federal (9), a Lei sobre o Parcelamento do Solo Urbano (10), a Lei sobre os Crimes do ‘‘Colarinho Branco’’ (11), a Lei sobre Licitações e Contratos Administrativos (12), igualmente tipificam
atos criminosos e cominam as respectivas penalidades.
A estas ainda se aduz, não definindo crimes, porém contravenções, a Lei das Contravenções Penais (13).
Igualmente, o Código Penal Militar (14), a Lei de Falências (15), (a qual, inclusive trata da falência de empresas concessionárias de serviços públicos), o Código Eleitoral (16), entre outros diplomas legais (que escapam aos limites do presente
estudo), trazem sempre disposições penais que atingem os servidores públicos. No entanto, os crimes enunciados nessas leis têm foro especial, ou previamente designados por Lei.
Não há como confundir os crimes praticados pelo servidor comum com os denominados crimes de responsabilidade, cujos autores somente podem ser os agentes políticos, — presidente da República, governadores de Estado e do Distrito Federal, prefeitos,
ministros de Estado e secretários de Governo (federal, estadual, distrital e municipal), bem como os magistrados (17). Ou, disciplinada a questão em outra lei, a responsabilidade de prefeitos e vereadores (18). A legislação que rege o problema dos
crimes de responsabilidade não é a mesma que disciplina o aspecto em relação ao servidor (19).
NOTAS:
(1) COSTA E SILVA, cit. por NÉLSON HUNGRIA, ‘‘Comentários ao Código Penal’’, v. IX, 2ªed. R. de Janeiro, Forense, 1959, p.313.
(2) CARLOS CREUS, ‘‘Delitos contra la Administración Pública.’’ Buenos Aires, Editorial Astrea, 1981, p. 3.
(3) A Lei nº 8.112, de 1990, no parágrafo único do art. 154, diz que ‘‘na hipótese de o relatório da sindicância concluir que a infração está capitulada como ilícito penal, a autoridade competente encaminhará cópia dos autos ao Ministério
Público, independentemente da imediata instauração do processo administrativo.
(4) Lei nº 8.112, de 1990, art. 171: Quando a infração estiver capitulada como crime, o processo disciplinar será remetido ao Ministério Público para instauração da ação penal, ficando trasladado na repartição.
(5) NÉLSON HUNGRIA, cit., p. 321.
(6) Código Penal, art. 7º. Ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro:
I — os crimes:
b) contra o patrimônio ou a fé pública da União, do Distrito Federal, de Estado, de Território, de Município, de empresa pública, sociedade de economia mista, autarquia ou fundação instituída pelo Poder Público.
c) contra a administração pública, opor quem está a seu serviço.
(7) — Lei nº 4.878, de 03-12-1965, que ‘‘Dispõe sobre o Regime Jurídico Peculiar aos Funcionários Policiais Civis da União e do Distrito Federal’’.
(8) — Lei nº 6.368, de 21.10.1976, que ‘‘Dispõe sobre Medidas de Prevenção e Repressão ao Tráfico Ilícito e Uso Indevido de Substâncias Entorpecentes ou que Determinem Dependência Física ou Psíquica, e dá outras providências’’.
(9) — Lei nº 6.437, de 20.08.1977, que ‘‘Configura Infrações à Legislação Sanitária Federal, estabelece sanções respectivas e dá outras providências’’.
(10) — Lei nº 6.766, de 19.12.1979, que ‘‘Dispõe sobre o Parcelamento do Solo Urbano e dá outras providências’’.
(11) — Lei nº 8.429, de 02.06.1992, que ‘‘Dispõe sobre as Sanções Aplicáveis aos Agentes Públicos nos casos de Enriquecimento Ilícito no Exercício de Mandato, Cargo, Emprego ou Função na Administração Pública Direta, Indireta ou Fundacional
e dá outras providências’’.
(12) — Lei nº 8.666, de 21.06.1993…
(13) — Decreto-Lei nº 3.688, de 3.10.1941, ‘‘Lei das Contravenções Penais’’.
(14) — Decreto-Lei nº 1.011, de 21.10.1969 — ‘‘Código Penal Militar’’.
(15) — Decreto-Lei nº 7.661, de 21.06.1945 — ‘‘Lei de Falências’’.
(16) — Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965 — ‘‘Institui o Código Eleitoral’’.
(17) — Lei nº 1.079, de 10.04.1950, que ‘‘Define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo e julgamento’’.
(18) — Decreto-Lei nº 201, de 27.02.1967, que ‘‘Dispõe sobre a Responsabilidade de Prefeitos e Vereadores, e dá outras providências’’.
(19) — Trecho do livro do autor, ‘‘Processo Disciplinar’’, Brasília, Consulex, 1997, já esgotado, com 2ªedição no prelo.