DELEGADO DE POLÍCIA, NUNCA MAIS!
Rolf Koerner Junior
Com a Constituição Federal de 1988, constitucionalizou-se, em nosso País, a segurança pública. Constitui ela um dever do Estado, tem finalidades só e sempre alcançáveis pelos órgãos que, taxativamente, o Diploma Maior enumera na regra do art. 144. Particularmente
à Polícia Civil, mandou o Constituinte que a instituição seja dirigida por delegados de polícia de carreira, aos quais incumbe, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares”
(cf. art. 144, § 4.º, Const. Fed.). Sobre caber à lei organizar e fazer funcionar os órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades, sempre nos limites de suas atribuições e pelas autoridades (só
elas) que as encarnam, dispõe o § 7.º, do art. 144, da Constituição Federal.
Se, ainda no Paraná, perpetua-se a categoria do calça curta assistente de segurança delegado de polícia é porque os tribunais brasileiros sempre insistiram em
dar pouco ou nenhum valor ao inquérito policial; é simples procedimento investigatório, despido do crivo do contraditório, e as eventuais falhas ou imperfeições nele detectáveis não se transmitem ao processo criminal respectivo e não o invalidam e
prejuízo algum causariam ao investigado, ou, segundo a lição do e. Supremo Tribunal Federal, “sendo o inquérito policial peça meramente informativa, não há como pretender-se que vício seu possa projetar-se na ação penal, acarretando a nulidade desta”.
Então, grande questão apequena-se; cidadania atribui-se à vida institucional de calças curtas assistentes de segurança delegados de polícia e credibilidade de garantia, apenas politicamente segurada por interesse não público, dá-se-lhes e
à inteireza de seu trabalho policial civil.
Apesar de há muito viger, no Brasil, a Constituição Federal, o problema – que é seríssimo – persiste. A regra de seu art. 144, § 4.º, deve ser visualizada à luz do princípio acessibilidade aos cargos
públicos por aqueles que, na forma da lei, atendam às exigências de capacidade estabelecidas. Ademais, sempre submetidos os interessados à obrigatoriedade de concurso público. Aliás, é só com o concurso público que se realizam, na sua amplitude, os
princípios de moralidade, eficiência e aperfeiçoamento do serviço público. Mas, além disso tudo, fala-se também em igual oportunidade a todos os interessados que atendam aos requisitos que a legalidade impõe-lhes e ao administrador igualmente. Nas
palavras de H. L. Meirelles, “Pelo concurso afastam-se, pois, os ineptos e os apaniguados, que costumam abarrotar as repartições, num espetáculo degradante de protecionismo e falta de escrúpulos de políticos que se alçam e se mantêm no poder leiloando
empregos públicos”.
Calça curta não é delegado de polícia e calça curta não pode ser assemelhado ao delegado de polícia. Na monografia “Polícia Guardiã da Sociedade ou Parceira do Crime? – Um Estudo de Criminologia”, o criminólogo e professor
Virgílio Donnici, do Rio de Janeiro, sempre com língua e pena afiadas, enfrentou a questão ideológica de mando político policial que ainda não submergiu para morrer, em nosso Estado também. Quando comenta o que acontecia lá atrás, no tempo, disse
ele ser deplorável, no Império, a organização policial “e esteve sempre dominada pelo aspecto político partidário … O federalismo de 1891 deixou para os Estados as questões policiais e cada um deles organizou o seu aparelho policial, sempre usado
como instrumento habitual da ação política …”
Bons ou maus, competentes ou incompetentes os calças curtas, ainda eles existem e é na História da vida de nosso País que se buscaria o fundamento cultural para a sua existência, jamais legal,
pelo que dispõe o § 4.º, do art. 144, da Constituição Federal. Aliás, com esse Diploma Maior não mais duvido, mas que desapareceu o poder policial civil e militar desapareceu, e com ele a autonomia, porque quase engolidos os seus agentes pelo Ministério
Público, e a onipotência de autoridade, sempre e cada vez mais sob o crivo de rigoroso controle do Poder Judiciário. Então, subtrair-se a polícia de atuação legal não lhe permite mais a regra do art. 37, da Constituição Federal; burocratizar-se a
instituição não dá mais porque o § 4.º, do art. 144, da CF, impõe-lhe (aos órgãos e agentes de investidos na Segurança Pública) eficiência na realização de suas atribuições legais.
Em 23 a 25 de abril de 1980, o Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil realizou um seminário sobre Criminalidade Violenta. Na reunião do dia 24, trabalhou o professor Donnici. A sessão foi presidida pelo advogado (hoje Ministro do STF) José Paulo Sepúlveda Pertence. Foram debatedores o jornalista
Paulo Sergio Pinheiro, o Procurador de Justiça paulista Hélio Bicudo, o criminólogo de São Paulo João Milanez da Cunha Lima e Luiz Chemin Guimarães, integrante do Ministério Público, na época Diretor de Polícia Civil do Paraná. Em seu depoimento,
o Professor Luiz Chemin Guimarães levou aos participantes do seminário a (má) experiência do Paraná, no ano de 1980, que ainda é igual em 1998 tratando-se de calças curtas trabalhando como delegados policiais civis. Porém, antes, em Curitiba, no ano
de 1979, realizou-se o Congresso Nacional dos Delegados de Polícia; numa das conclusões apresentadas em carta à população, os policiais civis frisaram que “A atividade policial é cada vez mais profissionalizante e profissionalizada, exigindo formação
específica …”.
Entretanto, transcorridos dez longos anos desde o advento de nova ordem constitucional insiste-se em não ser assim (só) integrado, por policiais de carreira bacharéis em direito concursados, o órgão Polícia Civil paranaense.
As razões para a distonia entre o que quer a Lei Maior e o que se faz em nosso Estado são conhecidas por todos e de há muito tempo não há mais alguma razão para justificar a sobrevivência de calças curtas dirigentes da segurança pública, muito ou
mais ou menos longe ou, ainda, perto de Curitiba. Profissão policial civil delegado é profissão de fé; não é bico; envolve decisão para si e para os outros, pelo policial civil. Ninguém duvida, mas há policiais civis vocacionados para o exercício
dessa atividade e que realizam a instituição como “um instrumento para a garantia do cidadão”.
Inquérito policial é coisa séria; de há muito se abandonou o entendimento de que o inquérito não fere (para matar) a honorabilidade pessoal do indiciado.
A instauração de inquérito policial não só envolve opção entre o que é certo ou errado em face do bom-senso que habita a cabeça de ser nascido de mulher leigo juridicamente; implica em decisão, sempre e ninguém mais desacredita o argumento, nem o
Poder Judiciário que já deu e dará habeas corpus para prevenir e impedir ou trancar procedimentos instaurados em desacordo com a lei ou abusiva ou abusadamente.
O Brasil de hoje não é mais o Brasil de 1941. A grande extensão geo-gráfica sua
não mais impressiona; quase tantas as Faculdades quanto os metros de seu território. Se, naquela época, os calças curtas conviviam com rábulas, presentemente tal convivência é impossível. Os delegados de carreira encontram, nas casas de ensino jurídico,
idêntica formação à do advogado. Porém, depois, lá na Polícia Civil, ou aqui na Ordem dos Advogados do Brasil, para uns e outros, a vida profissional é fruto de uma opção e da capacidade. Concurso público para o delegado; exame de ordem para o advogado.
Quando, um dia, para a Ordem dos Advogados do Brasil, Secional do Paraná, escrevi que “O Termo Circunstanciado é da Polícia Militar Também!”, porque assim interpretei a regra do art. 69, da Lei n.º 9.099/95, alguns policiais civis espantaram-se. Interessante,
mas o que lhes diriam os militares quando soubessem que o calça curta dá-lhe forma e o remete para o magistrado especial, em razão de contravenções e crimes de pequeno potencial ofensivo praticados por outrem?
Com um só exemplo colocarei
em xeque o trabalho operacional de capacitação jurídica do assistente de segurança calça curta delegado de polícia, sobre eleger a fórmula de adequação de conduta num ou outro tipo de injusto criminal. Em sede de uso e disseminação de substâncias
entorpecentes geradoras de dependência física ou psíquica, em tese, usuário ou traficante seria o sujeito? Artigo 16 ou artigo 12, da Lei n.º 6.368, de 1976, a fim de o juízo de subsunção, apesar de provisório, porque sempre objeto de controle pelo
órgão do parquet e pelo Poder Judiciário, realizar-se? As conseqüências de má adaptação são terríveis, principalmente depois do advento, em nosso País, da Lei n.º 8.072, de 1990, que assemelhou aos crimes hediondos a infração tráfico ilícito de substâncias
entorpecentes.
A tipicidade, em Direito Penal, como uma das facetas da definição analítica de crime, não é a tipicidade de leigo, ou seja, crime seria todo fato levado à delegacia! Inquéritos instaurados sem justa causa; flagrantes inexistentes
ou mal feita a prisão ou, ainda, documentada em dissonância da lei; procedimentos desencadeados, sem contudo se manifestar o sujeito passivo, previamente, tratando-se de ação penal pública condicionada ou privada; prisões preventivas representadas
sem prova segura, certa, determinada de autoria de crime ou fundamentado o pedido (só) em repetição de cláusula legal etc. Sim poder de polícia jamais poderia ser confundido com poder da polícia, que não é polícia. Tanto faz confundir as personagens,
porque o que faz o calça curta faz também o bacharel em direito delegado que, por concurso público integrou-se na carreira policial.
Só atribuir, com exclusividade, para um e não para outro a qualificação delegado de polícia, seria esconder
o sol com a peneira! Não é isso que a lei quer; não quer, porém, que à luz de vida perene dê-nos calças curtas o Estado.