Luciano Henrique Cintra<
O movimento da “Lei e da Ordem” representa o uso de uma resposta penal absurdamente severa como medida de eficácia preventiva e intimidatória à criminalidade violenta. Sua influência se fez presente na Constituição Federal:
Art. 5º, Inc. XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes,
os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.
Analisando o movimento, argutamente observa Alberto Silva Franco , que o legislador, “em nome do movimento da ‘Lei e da Ordem’, além de criar uma categoria nova de delitos (os crimes hediondos), equiparou-a a outras espécies criminosas (tortura, tráfico
ilícito de entorpecentes e drogas afins e terrorismo), eliminou garantia processual de alta valia (fiança), vedou causas extintivas da punibilidade expressivas (anistia e graça) e, afinal, atribuiu ao legislador ordinário a incumbência de formular
tipos e cominar penas, numa luta contra o crime, sem descanso, mas fadada ao insucesso, por seu irracionalismo, passionalidade e unilateralidade”.
A Lei nº 8.072 de 25 de junho de 1990, nasceu, pois, dos reclamos dos defensores da ideologia do “law and order”, objetivando especificar e tornar aplicável as medidas restritivas de direitos e garantias fundamentais determinados pela Constituição
Federal.
O legislador optou por um critério objetivo (sistema legal), fazendo uma enumeração taxativa dos tipos penais tidos como hediondos, ao invés de definir o que seja crime hediondo e atribuir ao juiz a aplicação da norma penal (sistema judicial).
Com efeito, de acordo com o art. 1º da mencionada lei:
Art. 1º – São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, consumados ou tentados:
I – homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo
de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2º, I, II, III, IV e V);
II – latrocínio (art. 157, § 3º, in fine);
III – extorsão qualificada pela morte (art. 158, § 2º);
IV – extorsão mediante
seqüestro e na forma qualificada (art. 159, caput e §§ 1º, 2º e 3º);
V – estupro (art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único);
VI – atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223, caput e
parágrafo único);
VII – falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273, caput e § 1°, § 1°-A e § 1°-B, com a redação dada pela Lei n° 9.677, de 2 de julho de 1998).P.U. – Considera-se também hediondo o crime de genocídio previsto nos arts. 1º, 2º e 3º da Lei nº 2.889, de 1º de outubro de 1956, tentado ou consumado.
O ministro Francisco de Assis Toledo, mencionado por Silva Franco , considerando elogiável a adoção de tal critério, percebeu que uma conceituação genérica de hediondez “ofereceria margem para debates intermináveis, sem previsão de uma solução satisfatória,
a curto ou médio prazo”.
Alberto Silva Franco, crítico ao sistema adotado, afirma que “o texto legal pecou, desde logo, por sua indefinição a respeito da locução ‘crime hediondo’, contida na regra constitucional. Em vez de fornecer uma noção, tanto quanto explícita,
do que entendia ser a hediondez do crime (o projeto de lei enviado ao Congresso sugeria uma definição a esse respeito), o legislador preferiu adotar um sistema bem mais simples, ou seja, o de etiquetar, com a expressão ‘hediondo’, tipos já descritos
no Código Penal ou em leis especiais. Desta forma não é ‘hediondo’ o delito que se mostre ‘repugnante, asqueroso, sórdido, depravado, abjecto, horroroso, horrível’, por sua gravidade objetiva, ou por seu modo ou meio de execução, ou pela finalidade
que presidiu ou iluminou a ação criminosa, ou pela adoção de qualquer outro critério válido, mas sim aquele crime que, por um verdadeiro processo de colagem, foi rotulado como tal pelo legislador” .
Originalmente, a Lei 8.072/90 considerou oito tipos penais como hediondos, deu prioridade à tutela patrimonial, dos costumes e à alguns delitos de perigo comum. Com a Lei 8.930/94, o homicídio foi acrescentado ao rol e desaparece a figura
do art. 270 combinado com o art. 285 do CP, envenenamento de água potável ou de substância alimentícia ou medicinal, qualificado pela morte.
Pressionado pelo sensacionalismo tripudiado sobre alguns casos de crimes contra a saúde pública (como se só agora estivessem ocorrendo…), o legislador, às pressas, dada a proximidade das eleições, redigiu a Lei nº 9.695, de 20 de agosto
de 1998, alterando o inciso VII do art 1º. Sai do rol dos crimes hediondos o crime de epidemia com resultado morte, que segundo Dyrceu Aguiar Dias Cintra Júnior, “há décadas fora do repertório e cujas transferências conduzem apenas ao imaginário,
à manipulação ideológica que justificou até prisões arbitrárias em 1964” , e em seu lugar entra a falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais , condutas tipificadas no art. 273, caput e
§§, do CP, também modificados pela Lei. 9.677, de 2 de julho de 1998.
A Lei 8.072/90 também alcançou outras figuras delitivas, equiparando-as aos delitos hediondos. Assim, são também insusceptíveis de anistia, graça ou indulto, concessão de fiança ou de liberdade provisória:
* a prática da tortura (Lei
nº 9.455/97)
* o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins (Lei nº 6.368/76);
* o terrorismo
Lembre-se, estes crimes, por sua gravidade social, receberam tratamento idêntico àquele dispensado aos crimes hediondos, taxativamente
descritos no art. 1º, entretanto, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo NÃO SÃO CRIMES HEDIONDOS.
Tortura – A falta de tipificação do delito de tortura, por algum tempo, provocou celeuma na doutrina e jurisprudência, uns negavam a existência da tortura como forma típica, outros, inclusive o STF, defenderam a existência da figura da tortura
com base no art. 233 do ECA e nas convenções internacionais contra a tortura ratificadas. Finalmente, com a Lei. 9455 de 7 de abril de 1997, foi preenchida a lacuna.
A lei 9.455/97 , tipificou as formas de tortura, revogou o art. 233 do ECA e deu novo fôlego à questões sobre a vigência e a inconstitucionalidade do art. 2º, § 1º da Lei 8.072/90, que veremos adiante.
Tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins – Convém salientar a inexistência de um tipo penal com o nomem iuris “tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins” no nosso direito, devendo ser entendidas como tal as hipóteses fáticas insertas
nos arts. 12, 13 e 14 da Lei 6.368/76 .
Entretanto, aconselha Alberto Silva Franco, que “a carência de um tipo legalmente definido de ‘tráfico de entorpecentes e drogas afins’, e o caráter multifacetado que as condutas descritas nos arts. 12 e 13 da Lei 6.368/76 podem assumir,
recomendam, não apenas à autoridade policial (art. 37 da Lei 6.368/76), mas também ao juiz, que atuem com a máxima cautela, no enquadramento de hipóteses da Lei 6.368/76, em relação à Lei 8.072/90”. Idêntica a recomendação de Antônio Scarance Fernandes
, revelando “a falta de um tipo autônomo de tráfico ilícito e a multiplicidade de ações descritas no art. 12 farão com que sejam consideradas como incursas neste artigo atividades delituosas de pequena gravidade, como a do amigo que fornece ao seu
colega um cigarro para uso” (Considerações sobre a Lei 8.072/90 de 25 de julho de 1990 – Crimes Hediondos, RT 660/261).
Sobre o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins (leia-se arts. 12, 13 e 14 da Lei 6.368/76), a Lei 8.072/90 produziu efeitos de duas grandezas, genéricos e específicos. Em seus efeitos genéricos, proibiu a concessão de anistia, graça
ou indulto, vedou a fiança e a liberdade provisória, determinou a obrigatoriedade do cumprimento da penal integralmente no regime fechado, aumentou para dois terços da pena o prazo para a concessão do livramento condicional, além de ressuscitar a
figura da reincidência específica, como causa proibitiva do benefício. Como seus efeitos específicos entende-se a questão da associação criminosa, o agravamento da pena do tipo do art. 288 do Código Penal, a questão do apelo em liberdade e o aumento
dos prazos procedimentais.
Terrorismo – Ainda não existe no nosso ordenamento jurídico a figura típica do crime de terrorismo, não obstante estar previsto no art. 20 da Lei. 7.170/83 , que define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social. Não se
pode aceitar os “atos de terrorismo” do mencionado artigo como lastro para a tipificação da tortura . Alberto Silva Franco , esclarece que, estes atos de terrorismo, “nada mais são do que uma ‘cláusula geral’, de extrema elasticidade, que permite
ao julgador, por ausência de uma adequada descrição do conteúdo fático desses atos, enquadrar, a seu bel-prazer, qualquer modalidade de conduta humana. Isto fere, sem dúvida, o princípio constitucional da legalidade”.
Sucintamente podemos destacar os efeitos principais penais e processuais da Lei 8.072, de 21 de junho de 1990:
* Proibição dos benefícios da Anistia, Graça ou Indulto (art. 2º, I);
* Impossibilidade da concessão de fiança e liberdade provisória (art. 2º, II);
* Necessidade de cumprimento de 2/3 da pena para concessão de livramento condicional;
Vedação do benefício quando o apenado for reincidente específico em crimes dessa natureza. (art. 5º e CP, art. 83, V);* Aumento das penas dos crimes de latrocínio (CP, art. 157, § 3º), extorsão mediante seqüestro (CP, art. 159, caput
e seus §§ 1º a 3º), estupro (CP, art. 213, caput), atentado violento ao pudor (CP, art. 214, caput) e suas formas qualificadas (CP, art. 223), epidemia (CP, art. 267) e envenenamento de água potável ou substância alimentícia medicinal (CP, art.
270, caput);* Causa de aumento da pena, acrescendo de metade, nos crimes de latrocínio (CP, art. 157, § 3º), extorsão qualificada pela morte(CP, art. 158, § 2º), extorsão mediante seqüestro (CP, art. 159, caput e seus §§ 1º a 3º), estupro
(CP, art. 213, caput), atentado violento ao pudor (CP, art. 214, caput) ) e suas formas qualificadas (CP, art. 223), quando a vítima: não for maior de 14 anos; é alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância; não pode, por qualquer
outra causa, oferecer resistência (art. 9º e CP, art. 224);* Criação da “Delação Premiada” (art. 8º, P.U. e CP, art. 159, § 7º);
* Aumento da pena do crime de quadrilha ou bando (CP, art, 288) quando objetivarem a prática de
crimes hediondos, prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins ou terrorismo (art. 8º);* Decretação de prisão temporária, com prazo de 30 dias prorrogáveis por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade
(Lei 7.960/89, arts. 2º c/c Lei 8.072/90, art. 2º, § 3º);* Contagem dos prazos em dobro quando se tratar dos crimes previstos nos arts. 12, 13 e 14 da Lei 6.368/98 (art. 10 acrescentando o P.U ao art. 35 da Lei 6.368/76);
A anistia, forma de extinção da punibilidade, exclui o crime, ex tunc, extinguindo a punibilidade e demais conseqüências de natureza penal. Por sua vez, a graça, destina-se a pessoa determinada e não a fato, como a anistia. O indulto, forma de
graça coletiva, abrange sempre um grupo de sentenciados. Tanto um como outro extinguem a punibilidade, substituindo o crime, a condenação irrecorrível e seus efeitos secundários;
A Constituição Federal determinou que a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos. A
Lei 9.455/97, em seu art. 1º, § 6º, superfluamente repetiu a ordem constitucional sobre a inafiançabilidade e insusceptibilidade de graça ou anistia.
Neste aspecto a Lei 8.072/90 não caminhou bem. Na sua ânsia repressora, mencionou também
o indulto, fazendo surgir duas correntes:
* A primeira, tomando a graça em sentido estrito, a menção é de flagrante inconstitucionalidade, pois o legislador ordinário não poderia, indo além do disposto na Constituição Federal, restringir a competência discricionária do Presidente da República
de conceder a indulgência coletiva. Enfileiram nesta corrente Alberto Silva Franco, Francisco de Assis Toledo e Antônio Scarance Fernandes;* A segunda, considerando a graça em sentido amplo. Entende que não há inconstitucionalidade
no dispositivo, pois finalisticamente, se um indivíduo não pode ser beneficiado, muito menos um grupo de pessoas o será. Para estes, a determinação constitucional compreende tanto o indulto individual quanto o coletivo. É defendida por Damásio,
Vicente Cernicchiaro e Mirabete.
Liberdade provisória, convém salientar, não se confunde com fiança, nem com crime afiançável. De acordo com o CPP, a liberdade provisória sem fiança pode ser concedida a qualquer delito afiançável ou não, quando faltar os requisitos da prisão
provisória.
CPP, Art. 310 – Quando o juiz verificar pelo auto de prisão em flagrante que o agente praticou o fato, nas condições do art. 19, I, II e III, do Código Penal, poderá, depois de ouvir o Ministério Público, conceder ao réu liberdade
provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos do processo, sob pena de revogação.
Parágrafo único – Igual procedimento será adotado quando o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, a inocorrência de qualquer das hipóteses
que autorizam a prisão preventiva (arts. 311 e 312).
A Constituição Federal também identifica esta diferença no art. 5º, inciso LXVI (…liberdade provisória, com ou sem fiança). A Lei 8.072/90 avançou o dispositivo constitucional trazendo
dúvidas e discussões, uma vez que a Constituição Federal não menciona a vedação da liberdade provisória, apenas afirma a inafiançabilidade daqueles crimes.
Brota daí dois entendimentos contrapostos:
* Aceitando a compatibilidade com a norma constitucional. A jurisprudência majoritária também tem se inclinado à uma aplicação literal do inciso II do art. 2º da Lei 8.072/90;
*
Considera inconstitucional a proibição da liberdade provisória. Argumentam que além da Constituição Federal não mencionar este efeito, ela consagra o direito à liberdade provisória, pois, de acordo com o art. 5º, inciso LXVI, ninguém será levado à
prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança, Odone Sanguiné aponta que a vedação da liberdade provisória “eqüivale à privação de liberdade obrigatória infligida como pena antecipada, sem prévio e regular
processo e julgamento” (Inconstitucionalidade da Proibição da Liberdade Provisória, in Fascículos de Ciências Penais, nº 4, pp. 20-21). Luiz Flávio Gomes declara que “não pode o legislador, com critério abstrato, substituir o juiz na tarefa de prender
ou mandar soltar, que é eminentemente concreta. O legislador não pode, a pretexto de atualizar a concretização dos direitos fundamentais, instituir a legalização de tais direitos” (Crime Organizado, 2ª Ed., 1997, Ed. RT, p. 17). Também seguem este
entendimento Alberto Silva Franco, Rogério L. Tucci e Magalhães Gomes Filho entre outros. Não obstante a segunda corrente ser correta, do ponto de vista doutrinário, a primeira vem sendo largamente aplicada pelos tribunais, e a questão parece ainda
estar longe de ser pacificada.
Jurisprudência: STF HABEAS CORPUS. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. ALEGAÇÃO DE QUE A PRISÃO CAUTELAR FOI DECRETADA SEM FUNDAMENTAÇÃO – NÃO COMETEU QUALQUER ILEGALIDADE O ACÓRDÃO ORA ATACADO, QUANDO, POR TER PRONUNCIADO O ORA PACIENTE, “SUBMETENDO-O A JULGAMENTO
PELO TRIBUNAL DO JÚRI PELA PRÁTICA DOS CRIMES DE HOMICÍDIO E DE TRÁFICO DE ENTORPECENTES”, LHE IMPÔS QUE AGUARDE PRESO ESTE SEU JULGAMENTO NOS TERMOS DO QUE ESTABELECE A LEI 8.072/90 PARA OS CRIMES ENTRE OS QUAIS SE ENCONTRA UM DOS QUE LHE SÃO
IMPUTADOS, E, POR ISSO, DETERMINOU A EXPEDIÇÃO CONTRA ELE DO COMPETENTE MANDADO DE PRISÃO. DE FEITO, AO ASSIM PROCEDER, CUMPRIU O DISPOSTO NA CITADA LEI QUE, COM BASE NO INCISO LXVI DO ARTIGO 5º DA CONSTITUIÇÃO, NÃO ADMITE A LIBERDADE PROVISÓRIA.
HABEAS CORPUS INDEFERIDO. (HC-73657 / SP, Publicado no DJ de 16-05-97, p. 19950, 1ª Turma, Rel. Min. MOREIRA ALVES).Jurisprudência: STJ PROCESSUAL PENAL. CRIME HEDIONDO. INCONSTITUCIONALIDADE. LIBERDADE PROVISORIA. REUS PRIMARIOS. I. OS PACIENTES, PRESOS EM FLAGRANTE, PELA PRATICA DE CRIME HEDIONDOS, NÃO TEM DIREITO A LIBERDADE PROVISORIA, EMBORA SEJAM
PRIMARIOS. TRATA-SE DE BENEFICIO CUJA REGULAMENTAÇÃO OU ADMISSIBILIDADE ESTA RESERVADA AO LEGISLADOR ORDINARIO. (RHC 3969/SP, 94/0031260-1, publicado no DJ de 24/10/1994, Pg. 28769, Rel. Min. JESUS COSTA LIMA).PROCESSUAL PENAL. CRIME HEDIONDO. TRAFICO DE ENTORPECENTES. LIBERDADE PROVISORIA. DESCLASSIFICAÇÃO DO CRIME. A VEDAÇÃO CONTIDA NO INCISO II DO ART. 2. DA LEI 8.072/90, SOBRE CONCESSÃO DE FIANÇA E LIBERDADE PROVISORIA AOS DENUNCIADOS PELA
PRATICA DE CRIMES HEDIONDOS, NÃO APRESENTA VICIO DE INCONSTITUCIONALIDADE POR SE TRATAR DE BENEFICIO CUJA REGULAMENTAÇÃO OU ADMISSÃO E DEFERIDA PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL A LEI ORDINARIA (ART. 5., LXVI). (RHC 5180/SP, 95/0071175-3, publicado no
DJ de 01/04/1996, p. 09921, Rel. Min. ASSIS TOLEDO).
A Constituição Federal consagrou o princípio da presunção de inocência no art. 5º, inciso LXVI. Garantiu que “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”.
O Código de Processo Penal, no art. 594, determina que “o réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança, salvo se for primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença condenatória, ou condenado por crime
de que se livre solto”.
A seu turno, a Lei 6.368/76 elevou a prisão provisória a requisito necessário para o recebimento do recurso em seu art. 35: “O réu condenado por infração dos art. 12 ou 13 desta lei não poderá apelar sem recolher-se à prisão”.
Na doutrina passou-se a questionar a constitucionalidade destes dispositivos ante o princípio do estado de inocência. Assim, uns entendiam que esses artigos tornaram-se inconstitucionais e, portanto, revogados pelo mesmo motivo, v.g., Fernando
da Costa Tourinho Filho e Alberto Silva Franco. Fundamentam o entendimento de que se o réu permaneceu livre durante toda a instrução e julgamento em primeira instância, não haveria razão para ele necessitar de se recolher à prisão para que a matéria
seja apreciada em grau de recurso.
Outra corrente, mais feliz, argumentando que o dispositivo constitucional não alcançava a prisão provisória, fez-se vencedora e adotada pelo STJ culminou na Súmula 9, “a exigência da prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia constitucional
da presunção de inocência”.
A Lei 8.072/90 despertou novas discussões, sendo muito criticado o § 2º do art. 2º. Determina que “em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu se o réu poderá apelar em liberdade”.
Por contrariar o disposto no art. 35 da Lei 6.368/90. Surgem três posições doutrinárias:
* O art. 35 FOI REVOGADO pela Lei 8.072/90. É defendida por, entre outros Mirabete . Alberto Silva Franco argumenta que o mencionado dispositivo
já havia sido revogado desde a Constituição Federal por ser incompatível com o princípio da presunção da inocência;
* O art. 35 NÃO FOI REVOGADO pela Lei 8.072/90, permanece intacto, como exceção à regra do art. 2º, § 2º da Lei 8.072/90.
Damásio E. de Jesus adotou esta posição sobre os seguintes argumentos: Não seria admissível uma lei que vindo punir mais severamente o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins pudesse beneficiar o traficante; A Lei 8.072/90 acrescentou um parágrafo
ao art. 35, mantendo o caput intacto; A revogação do art. 35 da Lei 6.368/76 constitui uma contradição jurídica, durante a formação da culpa permanece preso, reconhecida pelo juiz monocrático, é colocado em liberdade provisória. Assim, se o réu, incurso
nos arts. 12 ou 13 da Lei 6.368/76, se estiver em liberdade, deverá recolher-se a prisão para poder apelar, nas demais hipóteses, crimes hediondos, tortura e terrorismo, aplica-se o art. 2º, § 2º da Lei 8.072/90;
* O art. 35 FOI PARCIALMENTE
REVOGADO pela Lei 8.072/90, sobrevive como regra e o art. 2º, § 2º, torna-se a exceção. Se o juiz fundamentar a liberdade provisória esta é permitida, se silenciar, o condenado deve recolher-se à prisão para apelar, se já não estiver preso. É a posição
de Francisco de Assis Toledo, que ele fundamenta da seguinte forma: “O réu condenado por infração dos arts. 12 ou 13 desta Lei (Lei de Tóxicos) não poderá apelar sem recolher-se à prisão (art. 35, caput) salvo se: o Juiz, em decisão fundamentada,
conceder-lhe tal benefício (§ 2º do art. 2º da Lei de crimes hediondos)” . Também é aceita pelo STF.
Jurisprudência: STF EMENTA: HABEAS-CORPUS. CRIME DE TRÁFICO DE ENTORPECENTES: CONDENAÇÃO EM SEGUNDA INSTÂNCIA. PEDIDO PARA AGUARDAR EM LIBERDADE O JULGAMENTO DO RECURSO ESPECIAL INTERPOSTO, COM BASE NO ART. 2º, § 2º, DA LEI DOS CRIMES HEDIONDOS (LEI Nº
8.072/90) E NO ART. 5º, LVII, DA CONSTITUIÇÃO. A contradição entre o caput do art. 35 da Lei nº 6.368/76 – Lei de Tóxicos -, que proíbe ao réu incurso nos arts. 12 e 13 apelar em liberdade, e o § 2º do art. 2º da Lei nº 8.072/90 – Lei dos Crimes
Hediondos, a qual inclui entre eles o crime de tráfico de entorpecentes -, que prevê a possibilidade do réu apelar em liberdade, está contida no mesmo texto legal, porque o art. 10 da Lei nº 8.072/90 manteve expressamente o caput do art. 35 da
Lei nº 6.368/76. Assim sendo, não se pode falar em derrogação. Desta forma, a interpretação que se pode dar para compatibilizar as duas normas em conflito, no mesmo texto legal, é a de que para os crimes previstos nos arts. 12 e 13 da Lei de Tóxicos
continua vigorando a regra geral proibindo que tais réus apelem em liberdade, mas agora não mais em caráter absoluto como era antes do advento da Lei nº 8.072/90, podendo doravante o juiz, excepcionalmente e em decisão fundamentada, permitir que
tais réus apelem em liberdade, a qual, por sua vez, é a regra geral para os demais crimes considerados hediondos. (HC nº 74828-7, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA Informativo STF, nº 68, de 21 a 25 de abril de 1997).Jurisprudência: STJ HABEAS CORPUS COMO SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINARIO – CONDENADO POR TRAFICO DE ENTORPECENTE – PRETENSÃO DE RECORRER EM LIBERDADE – IMPOSSIBILIDADE, A VISTA DO DISPOSTO NO ART. 35 DA LEI N. 6.368/76 C.C ART. 2., PARAG.
2. DA LEI N. 8.072/90 – CONCESSÃO DE LIBERDADE PROVISORIA: NECESSIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO. 1. A REGRA GERAL, NOS CASOS DE CONDENAÇÃO POR CRIME HEDIONDO, E O RECOLHIMENTO A PRISÃO PARA APELAR, SENDO DESNECESSARIO FUNDAMENTAR TAL ATO, POSTO QUE A
JUSTIFICAÇÃO SE INSERE NA PROPRIA DETERMINAÇÃO LEGAL. 2. CONTUDO, TENDO NORMA SUPERVENIENTE ABRANDADO O RIGOR ABSOLUTO ANTES EXISTENTE, POSSIVEL E A CONCESSÃO DA LIBERDADE PROVISORIA,DESDE QUE, AI SIM, SEJA FUNDAMENTADA A DECISÃO QUE A CONCEDER.
3. PROCESSO, ADEMAIS, QUE OCORREU A REVELIA, DEMONSTRANDO QUE O PACIENTE NÃO SE SUBMETERA, ESPONTANEAMENTE, A EXECUÇÃO DE PENA. 4. PRECEDENTES DO STF 5. RECURSO IMPROVIDO. (HC 5599/SP, 97/0012066-0) publicado no DJ de 17/11/1997, p. 59607, Rel.
Min. ANSELMO SANTIAGO).
A Lei 8.072/90 estabeleceu no § 1º, do art. 2º que: A pena por crime previsto neste artigo será cumprida integralmente em regime fechado. Questionou-se sobre a retroatividade do dispositivo. Seria aplicável aos crimes abrangidos pela Lei 8.072/90,
praticados antes de sua vigência? Não se aplica. A matéria referente ao cumprimento é de natureza penal, não retroagindo salvo se beneficiar o réu . A doutrina e a jurisprudência são assentes neste entendimento.
Cabe mencionar a posição de J. F. Mirabete. Para ele, regime de cumprimento de pena é assunto de direito processual, portanto de aplicação imediata e irrestrita (Crimes Hediondos: Aplicação e Imperfeições da Lei, RT 663/268). Antônio Scarance
Fernandes também compartilha deste entendimento, para ele “as normas sobre progressão são próprias de execução penal, e não interferem no quantum da pena a ser cumprida, não a reduzem, não a alteram. Cuidam do local em que o preso cumprirá a pena
imposta. Têm aplicação imediata, resguardando-se situações já definidas, acobertadas pela coisa julgada”. Contudo, são posições isoladas e não foram aceitas pelos tribunais.
Ademais às críticas feitas ao dispositivo, por romper com a finalidade ressocializadora da pena e desestimular o condenado a possuir um bom comportamento em nome de alguma benevolência, o § 1º do art. 2º vem sendo criticado e argüido de inconstitucionalidade
por afronta ao princípio constitucional da individualização da pena . Dois entendimentos dividem a questão:
* § 1º do art. 2º da Lei 8.072/90 é INCONSTITUCIONAL por força do art. 5º, XLVI. O dispositivo afronta o princípio da individualização
da pena, posição francamente majoritária na doutrina;
* § 1º do art. 2º da Lei 8.072/90 é CONSTITUCIONAL. O dispositivo não contradiz a Constituição Federal, devendo ser regularmente aplicado. É o entender do STF;
A individualização
da pena compreende três fases distintas e seqüenciais: cominação, aplicação e execução. A cominação é feita abstratamente pelo Legislador. Ao Judiciário compete, em conformidade com os critérios legais, aplicar a pena ao caso concreto. Segue-se a
execução da pena. Nesta última fase também cabe ao Judiciário aplicar a cada caso concreto as disposições penais e processuais atinentes à execução, v.g., as disposições relativas ao regime de cumprimento da pena.
A questão da constitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei 6.368/90, por violação do princípio da individualização da pena, foi provocada pelo fato do legislador atropelar a fase de aplicação da pena e dispor sobre assunto, por sua natureza,
compete exclusivamente ao Poder Judiciário. Conclui Luiz Flávio Gomes que “ao proibir a progressão, destruiu o conteúdo essencial da individualização da pena na fase de execução. Nenhuma norma regulamentadora de direitos fundamentais pode, a pretexto
de regulamentá-la, eliminar o conteúdo do direito” . O STF, todavia, tem se manifestado pela constitucionalidade do dispositivo.
Jurisprudência: STF “HABEAS-CORPUS”. CRIME HEDIONDO. CONDENAÇÃO POR INFRAÇÃO DO ART. 12, PAR. 2. II, DA LEI N. 6.368/76. CARACTERIZAÇÃO. REGIME PRISIONAL. CRIMES HEDIONDOS. CUMPRIMENTO DA PENA EM REGIME FECHADO. ART. 2. PAR. 1., DA LEI 8.072/90. ALEGAÇÃO
DE OFENSA AO ART. 5., XLVI, DA CONSTITUIÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE NÃO CARACTERIZADA. INDIVIDUALIZACAO DA PENA. REGULAMENTAÇÃO DEFERIDA, PELA PRÓPRIA NORMA CONSTITUCIONAL, AO LEGISLADOR ORDINÁRIO. A LEI ORDINÁRIA COMPETE FIXAR OS PARÂMETROS DENTRO
DOS QUAIS O JULGADOR PODERÁ EFETIVAR OU A CONCREÇÃO OU A INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA. SE O LEGISLADOR ORDINÁRIO DISPÔS, NO USO DA PRERROGATIVA QUE LHE FOI DEFERIDA PELA NORMA CONSTITUCIONAL, QUE NOS CRIME HEDIONDOS O CUMPRIMENTO DA PENA SERÁ NO REGIME
FECHADO, SIGNIFICA QUE NÃO QUIS ELE DEIXAR, EM RELAÇÃO AOS CRIMES DESSA NATUREZA, QUALQUER DISCRICIONARIEDADE AO JUIZ NA FIXAÇÃO DO REGIME PRISIONAL. (HC-69603 / SP, Publicado no DJ de 23-04-93, p. 06922, TRIBUNAL PLENO, Rel. Min. PAULO BROSSARD).Jurisprudência: STJ CONSTITUCIONAL E PENAL. CRIME HEDIONDO. TRAFICO DE ENTORPECENTES. PENA. REGIME FECHADO. 1 – A PENA PELO CRIME DE TRAFICO DE ENTORPECENTES (ART. 12, DA LEI 6.368/1976) DEVE SER CUMPRIDA INTEGRALMENTE EM REGIME FECHADO,
A TEOR DO ART. 2., PAR. 1., DA LEI 8.072/1990, DECLARADO CONSTITUCIONAL PELO STF (PLENO), “UT” HC 69.603/SP (RISTJ 146/611) E HC 69.657/SP (DJU 18/06/1992). 2 – RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. (RESP 62105/SP, 95/0011771-1, publicado no DJ de 03/03/1997,
p. 04715, Rel. Min. LUIZ VICENTE CERNICCHIARO).HC – CRIMES HEDIONDOS – DELITO PREVISTO NO ART. 12 DA LEI 6.368/76 – PENA CUMPRIDA EM REGIME FECHADO – APLICAÇÃO DA LEI 8.072/90. – DISPONDO O LEGISLADOR QUE NOS CRIMES HEDIONDOS O CUMPRIMENTO DA PENA SERA NO REGIME FECHADO, NÃO SE PERMITE
AO JUIZ QUALQUER DISCRICIONARIEDADE NA SUA FIXAÇÃO, TAL QUAL ESTABELECER NA FORMA PROGRESSIVA DA EXECUÇÃO. – INEXISTE QUALQUER INCONSTITUCIONALIDADE DO RIGORISMO LEGAL EM APLICAR-SE O ART. 2., PARAGRAFO 1., DA LEI 8.072/90, ANTE O CARATER DE HEDIONDEZ
PELA PRATICA DO DELITO PREVISTO NO ART. 12, DA LEI 6.368/76. – ORDEM DENEGADA. (HC 6659/SP 97/0090889-5, 5ª Turma, Rel. Min. CID FLAQUER SCARTEZZINI, publicado no DJ em 15/06/1998).
Mais lenha se colocou na fogueira com as Leis 9.034/95 (Lei de combate ao crime organizado) e 9.455/97 (Lei de Tortura), dispondo diversamente sobre progressão de pena, assim redigidas:
Lei 9.034/95, art. 10 – Os condenados por crimes decorrentes
de organização criminosa iniciarão o cumprimento da pena em regime fechado.
A situação se resolve, segundo lição de Luiz Flávio Gomes, da seguinte maneira: “se o crime organizado por extensão for de natureza hedionda, a lei nova é mais benéfica
e, portanto retroage; do contrário, a crimes não-hediondos a lei nova é prejudicial, porque fixa peremptoriamente o regime inicial fechado; é, assim, irretroativa” .
O legislador pecou de maneira capital no dispositivo da Lei 9.034/95, que pretenciona combater o crime organizado. Queria punir mais severamente a criminalidade decorrente das organizações criminosas mas só conseguiu beneficiar a criminalidade
hedionda decorrente destas organizações.
Nestes casos, como exceção à regra do art. 33 do Código Penal, os crimes decorrentes de organização criminosa, sejam punidos com reclusão ou com detenção obrigatoriamente tem o cumprimento da pena inicio no regime fechado. Eis a gafe do legislador,
esqueceu-se dos crimes hediondos. Criou-se uma situação no mínimo injusta: O membro de organização criminosa, que metodicamente comete crimes hediondos ou equiparados é beneficiado com a progressão de regime, enquanto o outro, criminoso solitário
e ocasional nas mesmas infrações, deve cumprir